domingo, 27 de abril de 2008

«OS FANTASMAS DE GOYA»

«Francisca Sabasa y Garcia», 1804-1808
Washingon, National Gallery
Tem cerca de 20 anos e tira proveito da emancipação feminina
que surge cautelosamente na época de Goya. A sua face já não
se esconde sob o véu e ela olha o espectador com segurança.
...
Terá sido esta Francisca que ajudou Milos Forman a compor o personagem Inês de «OS FANTASMAS DE GOYA». Tal como todas as mulheres de Goya, Inês também não sorri. A expressão é quase sempre séria e orgulhos, apesar do indiscritível sofrimento a que é sujeita. Em perda até final. No entanto, sempre com uma reserva de altivez na pose.
Os tempos que se avizinham serão conturbados: decadência da monarquia, austera e inclemente vigilância, até ao terror, da Inquisição.
Lorenzo, inquisidor -- Não esquecer que o austero e imponente Escorial é oficialmente designado por Real Palácio de San Lorenzo y Escorial -- não resistiu à volúpia de se deixar retratar por Goya, tal como Inês -- filha do poderoso comerciante -- e quando viu esse trabalho não descansou enquanto não a conheceu pessoalmente, para a acusar de heresia, condenando-a irremediavelmente à prisão.
Inconsolável, o pai de Inês alicia o inquisidor para jantar em sua casa e submete-o aos métodos de tortura do Santo Ofício. Lorenzo assina uma declaração vergonhosa e incompatível com a Inquisição, fugindo a seguir. O Retrato de Lorenzo é queimado em público, mas Inês não é libertada.
Ao deflagrar com a violência que é conhecida, a Revolução Francesa constituiu um péssimo augúrio. Em 1808 Napoleão invade Espanha. O Trono espanhol é entregue ao irmão José Bonaparte.




«O TRÊS DE MAIO DE 1808»
Madrid, Museu do Prado
Em 02 de Maio de 1808 ocorreu um incidente em Madrid. Um soldado francês
foi puxado do seu cavala e quase linchado. O general Murat anunciou que «Foi
derramado sangue francês. E necessária vingança!». Os mamelucos da Guarda
Imperial atacaram incontroladamente e os espanhóis defenderam-se com facas.
A 03 de Maio, cerca de 400 espanhóis, presos no dia anterior, foram executados
pelos pelotões de fuzilamento franceses. O massacre originou ma revolta a nível
nacional.
...

Surpreendentemente, Lorenzo aparece como figura destacada, no lado francês. Contacta Goya. Ambos, pelos meios ao alcance, tentam encontrar Inês que se obstina a encontrar a filha. Lorenzo já havia constituído família. Não reconhece essa paternidade e tudo faz para que a busca seja mal sucedida. Simbolicamente, a regeneração através do amparo que qualquer mulher ou criança poderiam esperar dos franceses, dos ideais da Revolução Francesa, não acontecerá. À semelhança do Santo Ofício, o terror espalhado é indescritível.




«O SONO DA RAZÃO PRODUZ MONSTROS» (Capricho 43)
1797-1798
Esta água-forte do artista adormecido, ameaçado por rostos
irreais, pretendia ser a primeira obra do ciclo Caprichos.
Pode ler-se o título na pedra.
...
Na minha perspectiva, o filme dever-se-ia ter chamado «O SONO DA RAZÃO» pela premonição dos «Caprichos» Estes fantasmas que assolam o artista estão perfeitamente adequados tanto ao terror da Inquisição quanto ao congénere espalhado pela Revolução Francesa e as Invasões Napoleónicas.




«GOYA E O SEU MÉDICO ARRIETA» 1820
Mineápoles Institute of Art
...
Se alguém tivesse guardado uma madeixa de cabelo de Goya talvez se soubesse muito mais sobre a doença que se manifestou pela primeira vez em 1792 -- Temporariamente paralítico, parcialmente cego e totalmente surdo -- e que o abalou gravemente com uma recidiva em 1819. Felizmente, houve a possibilidade de reproduzir essa agonia com o mérito indiscutível de toda a sua obra.





«O GUARDA-SOL» 1776-178
Madrid, Museu do Prado
Maria Luísa, esposa de Carlos, desejava cenas alegres para as tapeçarias da
sua sala de jantar.
Goya criou, então, esta imagem de uma jovem elegante senhora abrigada sob
um guarda-sol verde, com um cãozinho no colo.


Fontes: Wikipedia: entrada «GOYA»; Google Image: entrada «GOYA» onde obtive as reproduções dos quadros; Sites dedicados: Cinema «DVDpt» e «GOYA» de Rose-Mary & Rainer Hagen Ed. Taschen (De onde retirei as legendas das reproduçõesdos quadros.



quarta-feira, 23 de abril de 2008

«O Anel de GYGES»



Um pastor chamado Gyges,
encontra por acaso uma caverna
onde jaz um cadáver que usa um anel.
Quando Gyges enfia o anel no próprio dedo,
descobre que ele o torna invisível.
Sem ninguém para monitorar o comportamento,
Gyges passa a praticar más acções
-- seduz a rainha, mata o rei, etc.
Questão moral:
Algum homem seria capaz de resistir à tentação do mal
se soubesse que os seus actos não seriam testemunhados?
(O Anel de Gyges, em «A República» de Platão)
...
«(...)
Se eu tivesse permanecido livre, desconhecido e isolado, segundo os desígnios da natureza, nada mais teria feito senão o bem, porque o meu coração não contém as sementes da paixão danosa. Se tivesse sido invisível e poderoso como Deus, teria sido bom e benéfico como Ele. É a força e a liberdade que tornam os homens bons; a fraqueza e a escravidão nunca produziram nada senão malfeitores. Se eu tivesse possuído o anel de Gyges, ele ter-me-ia concedido a independência face aos outros homens e tornado os outros homens dependentes de mim. Muitas vezes me perguntei, quando construo castelos no ar, como teria usado esse anel, porque, nessas circunstâncias, o poder deve ser seguido de perto pela tentação de abusar dele. Capaz de satisfazer os meus desejos, de fazer tudo sem ser enganado por ninguém, o que poderia eu ter desejado de uma forma consistente? Somente uma coisa: ver todos os corações satisfeitos; a visão da felicidade geral é a única coisa que me poderia ter concedido uma satisfação duradoura, e o desejo ardente de contribuir para ela seria a minha mais constante paixão.»
(Pg. 234)
...
Fonte:
«A Filosofia Segundo Woody Allen»
Conard, Mark T. e Skoble, Aeon J.
Ed. estrelapolar

sábado, 19 de abril de 2008

"MY FUNNY VALENTINE"


Colocar "lembretes" na porta do nosso frigorífico torna-o igual a tantos outros, a milhares deles. O que distinguirá o nosso dos outros é a «Matriz Funcional Familiar = MFF». A ideia foi do meu pai. A minha mãe anuiu. Agora iremos ver se funciona.

Trata-se de um quadrado subdividido em quatro mais pequenos, iguais entre si. No lado superior, o meu pai escreveu «EM ALTA»; na base «EM BAIXA»; nas laterais, à esquerda «EFÉMERO»; à direita «MEMORÁVEL»

«A partir de hoje» começou por dizer o meu pai «As nossas semanas passarão a ter uma representação matricial.» A minha irmã «'Quê, paizinho?» Solicita, a minha mãe «Matricial, filhote!» O meu pai «O que fizerem será classificado segundo um certo impacto e duração - Efémero e Memorável -- segundo um grau de notoriedade -- Em Alta ou em Baixa -- Perceberam?» Eu pensei logo «Isto e para nos tramar!» A minha irmã «Mas não basta colar os "lembretes"?» O meu pai «Claro! Os "lembretes" continuam a ser colados. Mas agora iremos classificá-los!» Apaziguadora, a minha mãe «A próxima semana é de adaptação. No final faremos a avaliação e veremos se funciona. Depois, será a valer.»


§§§

Quadro 1:
«EFÉMERO-EM BAIXA»

À noite a minha mãe prepara uma sandwich mista para a minha irmã. Para mim, já não. Há dias apanhou-me a cheirar «Passa-se alguma coisa com o fiambre, Bruno?» Surpreendido «Não. Nada, mãe!» O meu pai «Outro dia também não me pareceu grande coisa!» A rebentar «A partir de hoje são vocês que tratam dos vossos pequenos-almoços!» A minha irmã mostrou-me a língua e fez «Hum!» Não me ralei nada. Na manhã seguinte, levantei-me cedo, abri uma carcaça e roubei-lhe o fiambre e o queijo da sandwich. A Sónia até já me disse «Sabias que a tua irmã traz para a escola uma sandwich sem nada?» Eu a fingir «Como?» Eu vi «Abre a sandwich, derrama para lá o iogurte líquido e come aquela porcaria!» Eu mais sonso «Tenho que falar com a minha mãe!» A Sónia aflita «Não. Isso, não! Fala primeiro com a Isabel!» Condescendendo «Ok. Miúda tonta, não é?!» Enfiei a mão esquerda no bolso traseiro das calças de ganga da Sónia e a mão direita sobre o seu ombro direito; ela cingiu-me a cintura com o seu braço esquerdo enquanto passeávamos no recreio da escola.
Estágio:
«Separado: deficiente orientação tanto para as relações como para as tarefas.» Eu discordo. A Sónia e eu estamos a atravessar uma fase do caraças! Estaria o meu pai a pensar em quem? -- Na minha irmã, em quem...


§§§
Quadro 2:
«EFÉMERO-EM ALTA»
Quando a Isabel fez uma fita e gritou porque também queria ir eu ia morrendo. Felizmente, o meu pai explicou-lhe que o convite era dirigido a mim e que os pais da Sónia tinham esclarecido que antes do Verão convidar-nos-iam. «Achas bem o pai e a mãezinha ficarem aqui em casa sozinhos, filhote?» Argumentou a minha mãe. Inconsolável «Mas eu tamém queria ir com o mano!» Não foi «Uff!!!»
A quinta dos pais da Sónia é enorme. Em vez de um muro, uma sebe cuidadosamente tratada envolve a casa. À frente da pergola abre-se um espelho de água deslumbrante e, para lá dele, um green extenso.
«Por mim, teriam acampado aqui. Condescendi porque a Maria prometera isso à Sónia.» Eu atrevido «Correu tudo bem!» O pai da Sónia olhou para mim. Um instante depois fomos chamados para almoçar.

À despedida, a mãe da Sónia entregou-me um saco da Zara com roupa minha. Ainda hoje estou para saber porque é que ela quis abrir o saco da Sónia. Eu partira com dois sacos «Um só chega, mãe!» Fartei-me de dizer-lhe. Não me ouviu. Eu tinha combinado com a Sónia. Quando ela desfizesse o saco entregar-me-a as duas T-shirt e os calções de banho. «Não te preocupes, fofo!» O meu pijama também lá estava e eu nunca mais me lembrei dele.
Estágio:
«Relacionado: exclusivamente orientado para as relações.» Fiquei a matutar «O que é que os pais dela terão pensado...

§§§
Quadro 3:
«MEMORÁVEL-EM BAIXA»

A Isabel a zucrinar «És um egoísta. Tão cedo não voltarei a falar-te! -- Qual era o problema irmos os três? -- Egoísta, não. Um merdas, sim!» Não respondi.

Quem é que aguenta esperar uma eternidade por uma resposta a um SMS -- «Deixaste alguma roupa no meu saco, Sónia?» -- Que chatice! Desliga telemóvel e não quer saber de mais nada. A minha mãe num frenesim a preparar uma máquina de roupa do meu saco...
Estágio:
«Dedicado: exclusiva orientação para a tarefa.» De mãos nos bolsos, o meu pai foi e voltou sem cessar de avaliar o meu zelo na limpeza dos ferros e das espias da tenda, no dobrar o duplo tecto, no enxugar cada recanto de humidade escondida. A minha mãe nostálgica «Lembras-te quando acampámos junto à falésia? Ao desmontar a tenda, debaixo daquele vendaval, o duplo tecto voou. Nunca mais o vimos!» Eu ansioso «Terão descoberto alguma peça de roupa da Sónia no meu saco?»

§§§

Quadro 4:
«MEMORÁVEL-EM ALTA»
(30 de Maio, Sexta):
Chegámos aqui ao Alentejo eram 2 das tarde. Fazia tanto calor que, sem pedir, atirei-me para a piscina. A minha mãe ralhou, claro.
Estive com a Sónia no quarto dela. Conversámos imenso.
O meu irmão acha-se um senhor. Prá li anda atrás do meu pai e do pai da Sónia. A minha mãe anda a fazer costume: não larga a mãe da Sónia a contar-lhe as nossas tropelias. Se apostasse ganhava!
(...)
O jantar foi uma porcaria. Nem sei descrever: axegãs (?) fritos com açorda a tresandar a alho salpicada com uma erva verde «É aromática, filha!» «Coentros» acrescentou o meu pai. «Isso!» sublinhou o meu irmão.
(...)
Não percebo porque é que mano aqui no Alentejo sempre que fala põe um "porra" nas frases....
(31 de Maio, Sábado):
Fomos passear de barco na barragem. Mesmo com o colete não fui capaz de me atirar à água. Eu gosto e sei nadar! O mano atirou-se logo. À bruta. Salpicou-me toda. «Parvalhão!» O pior foi quando o barco se avariou. O motor não pegava. Não havia remos a bordo. Os telemóveis estavam sem sinal de rede. Só não chorei porque a minha mãe, severa, de boca tão cerrada, até parecia que tinha cosido os lábios, me abriu os olhos como eu nunca vi. «Nunca mais voltarei ao Alqueva. Porra!»
(01 de Junho, Domingo):
Daqui a uma hora voltamos para casa. Só me falta escovar os dentes e guardar o estojo de higiene pessoal. É esquisito: tenho a sensação de que me falta qualquer coisa. Não sei o quê!... A Sónia é fixe. Os pais dela são como os meus: porreiros. A sério! (Um "porra" aparece mal rasurado).
Estágio:
«Integrado: orientação para as relações e tarefas» Concordo, apesar do meu pai achar que eu não devo meter o bedelho. «Isabelinha!...»

Uma semana depois, a minha mãe com o meu diário na mão «Dou a minha palavra que não li uma linha, filhote! -- Mas não garanto que os pais ou Sónia o tenham feito, talvez não.» Eu tão aflita, só me apetecia chorar. A cara enterrada na almofada, que consolo era aquele, a minha mãe a afagar-me...


§§§

A quantidade de "lembretes" para classificar esgotaria rapidamente a paciência familiar. O balanço era desanimador. Os "lembretes" ou reflectiam desavenças entre irmãos a aguardar a mediação paternal, ou acriónias sublimadas entre os adultos. O projecto foi suspendido.
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(Nota: «MY FUNNY VALENTINE» é uma lindíssima execução de piano do Bernardo Sassetti, incluida no CD «INDIGO»)

quinta-feira, 17 de abril de 2008

«Em Busca de Um Brinco Perdido...»

«Tens a certeza que foi aqui que brinco caíu?»
«Já te disse que sim!!!»

(«...Na sua introdução à Vida Devota (1608),
cuja tradução foi publicada na Holanda em 1616,
o místico S. Francisco de Sales (1567-1622)
escreveu:

«Tanto no passado como no presente,
foi e é costume as mulheres pendurarem
pérolas nas orelhas,
pelo prazer que sentem,
como Plíno observou,
por elas lhes tocarem ao balançar.
...
...Isaac, enviou brincos a Rebeca
como primeiro sinal do seu amor
...»)

Fonte: «VERMEER» Schneider, Norbert; Ed. Tachen
«A Menina do Brinco de Pérola»

segunda-feira, 14 de abril de 2008

«Uma "certa" ideia de fama...»


O que realmente nos faz mal:
Imoralidade
Ilegalidade
Vícios

A.
SMS To RITA: mana preciso falar responde tá (09.04.2008 15:10)
SMS To BRUNO: o k e k se passa? (09.04.2008 15:15)
SMS To RITA: a k horas chegas a casa? (09.04.2008 15:18)
SMS To BRUNO: fogo B as 4 (09.04.2008 15:25)
SMS To RITA: 'tou la a essa hora (09.04.2008 15:28)
B1.
(Thu, 09 Apr.2008 14:00)
Subject: devolvi te a porcaria do telemovel nao foi o k e k tu queres + se hoje ate as 10 da noite nao me responderes mando copia do filme a sandra se a partir de amanha nao pagares 100 aerios ponho aquela merda no youtube
B2.
A duração do filme é muito curta. 15 segundos, se tanto. Um grupo de quatro jovens está sentado à volta de uma mesa: a Sandra ao lado do Bruno, a Carla de costas, o Daniel à direita do plano de filmagem. Estão animados. Em cima da mesa há apenas sumos, livros e uma mochila. Presumindo ser do operador de filmagem, uma mão retira a mochila da frente da Sandra e desafia Bruno a pegar nela ao colo. O Bruno nem hesita. Pega na Sandra ao colo. A mini-saia sobe e no plano de aproximação rápida, o motivo da chantagem: a Sandra não vestia lengerie.
C.
A Rita ficou estupefacta com o relato do irmão. Não havia dúvida. O mail era inequívoco. No attachment lá estava o filme. «Já foste ao YouTubeJá tinha ido. «Há mais de uma hora que ando a percorrer as Tags. Nada!» O Bruno desesperava. «Falaste com o Daniel e com a Carla?» Todos tinham ido às aulas esta manhã. «Ninguém se manifestou.»
Se não tivesse sido premeditação do Bernardo; se eram apenas as pernas e as cuequinhas da colega o que queria ver e filmar, o que fosse, só ele também reparou que afinal ela não as trouxera.
D.
«Só me apetece bater-te, Bruno!» Foi a primeira reacção da mãe. «Andas com a cabeça aonde. Vens para casa sem o telemóvel e achas que esse parvo ou lá o que é não ia espiolhar as porcarias que lá guardas. Tirar partido?» Revoltado «Quando ele me pediu o telemóvel era apenas para enviar uma mensagem, nunca para um filme destes, mãe!» Fora de si «És um pateta!!!»
E.
Na manhã seguinte os miúdos foram para a escola. No último intervalo antes da 1 da tarde o Bruno deu uma nota marcada de cinco euros ao Bernardo e pediu-lhe «Não tires cópias nem divulgues o filme. Se souberem disto, os meus pais matam-me!» Um pouco mais tarde, para surpresa do Bernardo, a mãe apareceu a convidá-lo para almoçarem. Ao mesmo tempo os pais do Bruno, da Sandra, da Carla e do Bernardo encontravam-se. Havia que eliminar o filme, no PC ou em backup. Todos concordavam. Não se trataria de resolver o velho dilema do mensageiro e da mensagem, senão de uma criancice. Cuidavam precaver os filhos da mais recente, nefasta e efémera fama, a do "YouTube".

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Para a ASAE, com amor!

(Gentileza Google)


Numa pastelaria




O Cliente:


«Meia de leite e uma sandwich de fiambre


sem manteiga!»






O Empregado:


«Pode ser sem margarina?»


(Fonte: Anónimo)
(ASAE: Autoridade de Segurança Alimentar e Económica)

sábado, 5 de abril de 2008

O Trombonista

(Gentileza Google)




«Música (Do grego: musiké téchne):
É uma sucessão de sons e silêncio
organizada ao logo do tempo»
Wikipedia




OS SONS


No autocarro para casa, se vier com o estojo do trombone, sentar-me-ei se houver um lugar vago junto a corredor. Pedir para ocupar a vaga junto à janela, não. Ter de apoiar o estojo no colo chateia-me. Além disso, constrange quem estiver ao meu lado.

Conheci a Dulce no autocarro. Sentada junto à janela.
Alheada.

Posei o estojo no chão. Sentei-me. Só cinco minutos depois é que olhei para ela. Vestia com sobriedade: camisa verde pérola, um casaco de malha ligeiramente mais escuro, suavemente pousado sobre os ombros e uma saia verde forte. Cabelo castanho claro levemente anelado, curto. Brincos minúsculos, rutilantes. Mais tarde, quando lhe devolvi o casaco de malha é que reparei naqueles enormes olhos.


Presto:


Quinze minutos depois pediu-me licença para sair. Quando o autocarro arrancou reparei que tinha deixado o casaco no banco. Apanhei-o. Agarrei no estojo e precipitei-me para o motorista «Pare, se faz favor. A senhora que acabou de sair esqueceu o casaco!»

Andante molto maestro:


Corri. Era desnecessário «Esqueceu-se do casaco...» Ela condescendendo «Ah! Cabeça a minha...Obrigado!» Afinal até íamos para o mesmo sítio e podíamos aproveitar para conversar.


Allegro con brio:


Os passeios repetiram-se. Trocámos ideias, confrontámos projectos, partilhamos afectos.


Exultate, jubilate:


Sendo o estado de benquerença tão sublime, confinámo-nos a uma residência. A Dulce veio cá para casa. Fartei-me de tocar. Ela adorava. Sentia-me como G. Maupassant «Eu ficava anelante, tão ébrio/ de sensações que a perturbação/ dessa embriaguez fazia delirar/ os meus sentidos. Na verdade já não/ sabia se respirava música, se ouvia/ perfumes ou se dormia nas estrelas»



O SILÊNCIO


Staccato:


As variações de humor conduzem as atitudes. É sabido. Falamos menos, alegramos-nos pouco. A rotina esmaga-nos. Alterar comportamentos, alivia-nos, é certo. Nem sempre restitui a alegria.

A Dulce falava cada vez menos. Eu ensaiava por impulsos. Aborrecia-me.

Custava-me o desencanto da Dulce. Ela não ajudava. Eu não encontrava maneira de desanuviar. Parecíamos dois meninos desorientados pela perda do colo.



O TEMPO


Lacrimosa:

A concepção comum do tempo é indicada por intervalos ou períodos de duração. Éramos alternadamente loquazes e silentes. Mas sem domínio sobre esses comportamentos. Sem qualquer sintonia, também. A euforia de um não vencia a soturnidade do outro. Nem nos contagiávamos! Dir-se-ia estarmos apatetados pela perda do espaço-tempo do nosso universo.

Enquanto fumo aqui à varanda -- O tabaco está a um preço de agiota! -- penso na Dulce -- Sem me importar que a cinza caia sobre a roupa ou sequer que a minha ex «Bardamerda para ela!» que acabou de ligar «Voltaste a pendurar roupa na vara do trombone?» -- penso em nós. Ela saiu e voltou a esquecer-se do casaco de malha. Desta vez vou guardá-lo. Correr também cansa!


Joaquim Allegro


terça-feira, 1 de abril de 2008

SETE VIDAS

(Gentileza Google)
Prólogo:
Vivo no último andar de um prédio RECRIA de oito condóminos. Os quatros esquerdos estão ocupados; o R/c dos direitos está livre. O cônjuge morreu e a viúva partiu.
Tive a possibilidade de escolher e não hesitei. Por cima abre-se uma clarabóia como nunca vi. Até nos dias mais soturnos de Inverno irradia uma luz única.
Instalei-me há seis meses. Mal conheço os vizinhos. Sei que à minha direita vive um casal com uma criança. Há cordialidade sempre que nos cruzamos. Apenas isso.
«Daqui em diante, vai, e pensa naquilo que
a boca não pode dizer nem o ouvido escutar»
Sefer Yetsirah, IV,16
1ª Vida:
O Lencastre -- R/c Esq. -- esteve na rua a passear o Faísca e a conversar com o ardina. Discutiram futebol.
Os condóminos do 1º andar estão fora. Pelam-se por pontes. A esta hora já estarão a acampar lá para Vila Nova, Porto Covo, onde for.
A D. Ester -- 2º Dto -- com uma surdez a galopar e um vício incorrigível por telenovelas tem o som da Tv no limite.
O Raul -- 2º Esq. -- é um pouco mais velho do que eu. Celibatário. Não se sente bem. Incompreensivelmente, em vez de chamar 112, abre a porta de casa e já não será capaz de pedir socorro. Estatela-se. O copo de água estilhaça-se e o gato, embora saiba que o líquido derramado não é leite, fareja para confirmar que é água. Quase imperceptível, um finíssimo fio de sangue desce do pescoço, de trás da orelha, até ao chão.
2ª Vida:
No regresso a casa, o Faísca vem sempre à trela solta.
Mal entrou no prédio sentiu o corpo do Raul. À desfilada, galgou as escadas até ao 2ºandar e surpreendeu o gato a lamber uma das patas. Este fugiu escada acima perseguido pelo Faísca.
Tamanho era o reboliço, abri a porta. O gato esgueirou-se. Ladrando, o Faísca desceu numa agitação surpreendente. «Era só o que me faltava em casa. Um gato! -- Escondeu-se aonde?»
Minutos mais tarde, à minha porta, a ofegar, o Lencastre afligia «Venha depressa lá abaixo. O Raul precisa de ajuda. Encotrei-o estendido à porta de casa.»
No hospital, o médico quis saber o meu grau de parentesco. Peremptório, acrescentou «O estado de saúde é grave. Esta noite não terá alta. Amanhã de manhã reavaliá-lo-emos. Apareça então.»
3ª Vida:
Telefonei à Luisa «Um gato aí em casa, Paulo?» Escondera-se. Como chamá-lo se nem o nome dele sabia. «Enche uma taça de leite. Ele há-de ir lá. Se ouvires ronronar é bom sinal. Ele há-de defecar. Sentirás o cheiro...» Sarcástica «Se fores arranhado... chama o 112. Irei ao hospital. Ai, nem penses!»
4ª Vida:
À minha porta «O Raul está no SO, D. Ester. Não recebe visitas. Quando ele voltar, a Senhora poderá ir lá a casa...» Ela aceitou a metirazinha e voltou para casa.
Relutante, casal vizinho quis saber do Raul e condoeu-se.
A porcaria do gato não deu sinal de vida.
E no entanto, uma medalha de identificação para animais domésticos jazia junto ao rodapé da minha porta.
«Em cada gato há outro gato
um pouco menos exacto
e um pouco menos opaco.
...
que anda por ali
algo que não cabe
dentro nem fora de si.»
«O segundo gato»
Manuel António Pina
5ª Vida:
Ninguém havia reparado, mas da clarabóia projectava-se a sombra de uma silhueta felina. imobilizada, paciente, altiva, independente.
«...Mas amanhã morro
e hoje gostaria de tirar este peso da minha alma.»
«O Gato Negro»
Edgar Allen Poe
6ª Vida:
A Luisa lamentou a morte do Raul. Insistiu muito na explicação da origem da septicemia. A medalha encontrada mais tarde pelo Paulo também a deixou muito perplexa. Sabia que tinha sido aprovada legislação para instalar chips nos animais domésticos, embora o incumprimento fosse grande.
Sem Paulo saber, foi a hospital. O médico que assistiu o Raul reconheceu ter reparado no arranhão mais tarde. «Sim, no pescoço. Muito superficial!» A causa do corte tanto podia ter sido provocada por uma lasca do copo partido como pelas unhas do gato. O relatório da autópsia ainda não era oficial e público. «Houve uma paragem cardíaca. Essa causa é segura, minha Senhora.»
Do prédio, a Luisa ficou a saber que havia uma cave, sim senhor. Estava a ser utilizada para armazém de uma pastelaria contígua ao edifício, com entrada completamente autónoma.
7ª Vida:
Sentada na poltrona a ouvir música, Luisa continuava a achar muito estranho o desaparecimento do gato, o desinteresse do Paulo pela medalha, o alheamento de todos.
O único familiar do Raul era uma senhora de idade, esclerosada, residente num remoto lar no Norte, distante de tudo e de todos. Por essa razão também, os bens do Raul foram empacotados e guardados num armazém até uma decisão sobre que deles fazer.
Foi a pensar nisto que acabou por adormecer.
§
De repente, o gato saltou para cima da mesinha de apoio da poltrona.
Imobilizou-se.
A ronronar itensamente fixou-a com o seu único olho.
A Luisa acordou. Gritou, gritou, gritou. Alcançou o corta-papéis e, enquanto teve força, espetou-o repetidamente. Afligia ouvir o gato miar estridentemente! A Luisa não queria saber se as suas sete vidas morreriam uma-a-uma ou em simultâneo. Tratando-se de uma réplica do Gato Negro de Poe, teria de morrer. Ela é que jamais aceitaria ser emparedada.
§
Sobressaltado, o Paulo teve enorme dificuldade em acalmá-la, fazê-la parar. A almofada estava desfeita. Quando acordou a exaustão era óbvia «Oh, meu deus. Que pesadelo!»
A Luisa concluiu o relato «O prédio transformou-se numa enorme caixa sem saídas. Da clarabóia apenas a luz entrecortada pelo frenesim de silhuetas. Sinistras! Horríveis!! E eu, inexoravelmente só. À mercê daquele monstro a ronronar!!!»