sábado, 19 de abril de 2008

"MY FUNNY VALENTINE"


Colocar "lembretes" na porta do nosso frigorífico torna-o igual a tantos outros, a milhares deles. O que distinguirá o nosso dos outros é a «Matriz Funcional Familiar = MFF». A ideia foi do meu pai. A minha mãe anuiu. Agora iremos ver se funciona.

Trata-se de um quadrado subdividido em quatro mais pequenos, iguais entre si. No lado superior, o meu pai escreveu «EM ALTA»; na base «EM BAIXA»; nas laterais, à esquerda «EFÉMERO»; à direita «MEMORÁVEL»

«A partir de hoje» começou por dizer o meu pai «As nossas semanas passarão a ter uma representação matricial.» A minha irmã «'Quê, paizinho?» Solicita, a minha mãe «Matricial, filhote!» O meu pai «O que fizerem será classificado segundo um certo impacto e duração - Efémero e Memorável -- segundo um grau de notoriedade -- Em Alta ou em Baixa -- Perceberam?» Eu pensei logo «Isto e para nos tramar!» A minha irmã «Mas não basta colar os "lembretes"?» O meu pai «Claro! Os "lembretes" continuam a ser colados. Mas agora iremos classificá-los!» Apaziguadora, a minha mãe «A próxima semana é de adaptação. No final faremos a avaliação e veremos se funciona. Depois, será a valer.»


§§§

Quadro 1:
«EFÉMERO-EM BAIXA»

À noite a minha mãe prepara uma sandwich mista para a minha irmã. Para mim, já não. Há dias apanhou-me a cheirar «Passa-se alguma coisa com o fiambre, Bruno?» Surpreendido «Não. Nada, mãe!» O meu pai «Outro dia também não me pareceu grande coisa!» A rebentar «A partir de hoje são vocês que tratam dos vossos pequenos-almoços!» A minha irmã mostrou-me a língua e fez «Hum!» Não me ralei nada. Na manhã seguinte, levantei-me cedo, abri uma carcaça e roubei-lhe o fiambre e o queijo da sandwich. A Sónia até já me disse «Sabias que a tua irmã traz para a escola uma sandwich sem nada?» Eu a fingir «Como?» Eu vi «Abre a sandwich, derrama para lá o iogurte líquido e come aquela porcaria!» Eu mais sonso «Tenho que falar com a minha mãe!» A Sónia aflita «Não. Isso, não! Fala primeiro com a Isabel!» Condescendendo «Ok. Miúda tonta, não é?!» Enfiei a mão esquerda no bolso traseiro das calças de ganga da Sónia e a mão direita sobre o seu ombro direito; ela cingiu-me a cintura com o seu braço esquerdo enquanto passeávamos no recreio da escola.
Estágio:
«Separado: deficiente orientação tanto para as relações como para as tarefas.» Eu discordo. A Sónia e eu estamos a atravessar uma fase do caraças! Estaria o meu pai a pensar em quem? -- Na minha irmã, em quem...


§§§
Quadro 2:
«EFÉMERO-EM ALTA»
Quando a Isabel fez uma fita e gritou porque também queria ir eu ia morrendo. Felizmente, o meu pai explicou-lhe que o convite era dirigido a mim e que os pais da Sónia tinham esclarecido que antes do Verão convidar-nos-iam. «Achas bem o pai e a mãezinha ficarem aqui em casa sozinhos, filhote?» Argumentou a minha mãe. Inconsolável «Mas eu tamém queria ir com o mano!» Não foi «Uff!!!»
A quinta dos pais da Sónia é enorme. Em vez de um muro, uma sebe cuidadosamente tratada envolve a casa. À frente da pergola abre-se um espelho de água deslumbrante e, para lá dele, um green extenso.
«Por mim, teriam acampado aqui. Condescendi porque a Maria prometera isso à Sónia.» Eu atrevido «Correu tudo bem!» O pai da Sónia olhou para mim. Um instante depois fomos chamados para almoçar.

À despedida, a mãe da Sónia entregou-me um saco da Zara com roupa minha. Ainda hoje estou para saber porque é que ela quis abrir o saco da Sónia. Eu partira com dois sacos «Um só chega, mãe!» Fartei-me de dizer-lhe. Não me ouviu. Eu tinha combinado com a Sónia. Quando ela desfizesse o saco entregar-me-a as duas T-shirt e os calções de banho. «Não te preocupes, fofo!» O meu pijama também lá estava e eu nunca mais me lembrei dele.
Estágio:
«Relacionado: exclusivamente orientado para as relações.» Fiquei a matutar «O que é que os pais dela terão pensado...

§§§
Quadro 3:
«MEMORÁVEL-EM BAIXA»

A Isabel a zucrinar «És um egoísta. Tão cedo não voltarei a falar-te! -- Qual era o problema irmos os três? -- Egoísta, não. Um merdas, sim!» Não respondi.

Quem é que aguenta esperar uma eternidade por uma resposta a um SMS -- «Deixaste alguma roupa no meu saco, Sónia?» -- Que chatice! Desliga telemóvel e não quer saber de mais nada. A minha mãe num frenesim a preparar uma máquina de roupa do meu saco...
Estágio:
«Dedicado: exclusiva orientação para a tarefa.» De mãos nos bolsos, o meu pai foi e voltou sem cessar de avaliar o meu zelo na limpeza dos ferros e das espias da tenda, no dobrar o duplo tecto, no enxugar cada recanto de humidade escondida. A minha mãe nostálgica «Lembras-te quando acampámos junto à falésia? Ao desmontar a tenda, debaixo daquele vendaval, o duplo tecto voou. Nunca mais o vimos!» Eu ansioso «Terão descoberto alguma peça de roupa da Sónia no meu saco?»

§§§

Quadro 4:
«MEMORÁVEL-EM ALTA»
(30 de Maio, Sexta):
Chegámos aqui ao Alentejo eram 2 das tarde. Fazia tanto calor que, sem pedir, atirei-me para a piscina. A minha mãe ralhou, claro.
Estive com a Sónia no quarto dela. Conversámos imenso.
O meu irmão acha-se um senhor. Prá li anda atrás do meu pai e do pai da Sónia. A minha mãe anda a fazer costume: não larga a mãe da Sónia a contar-lhe as nossas tropelias. Se apostasse ganhava!
(...)
O jantar foi uma porcaria. Nem sei descrever: axegãs (?) fritos com açorda a tresandar a alho salpicada com uma erva verde «É aromática, filha!» «Coentros» acrescentou o meu pai. «Isso!» sublinhou o meu irmão.
(...)
Não percebo porque é que mano aqui no Alentejo sempre que fala põe um "porra" nas frases....
(31 de Maio, Sábado):
Fomos passear de barco na barragem. Mesmo com o colete não fui capaz de me atirar à água. Eu gosto e sei nadar! O mano atirou-se logo. À bruta. Salpicou-me toda. «Parvalhão!» O pior foi quando o barco se avariou. O motor não pegava. Não havia remos a bordo. Os telemóveis estavam sem sinal de rede. Só não chorei porque a minha mãe, severa, de boca tão cerrada, até parecia que tinha cosido os lábios, me abriu os olhos como eu nunca vi. «Nunca mais voltarei ao Alqueva. Porra!»
(01 de Junho, Domingo):
Daqui a uma hora voltamos para casa. Só me falta escovar os dentes e guardar o estojo de higiene pessoal. É esquisito: tenho a sensação de que me falta qualquer coisa. Não sei o quê!... A Sónia é fixe. Os pais dela são como os meus: porreiros. A sério! (Um "porra" aparece mal rasurado).
Estágio:
«Integrado: orientação para as relações e tarefas» Concordo, apesar do meu pai achar que eu não devo meter o bedelho. «Isabelinha!...»

Uma semana depois, a minha mãe com o meu diário na mão «Dou a minha palavra que não li uma linha, filhote! -- Mas não garanto que os pais ou Sónia o tenham feito, talvez não.» Eu tão aflita, só me apetecia chorar. A cara enterrada na almofada, que consolo era aquele, a minha mãe a afagar-me...


§§§

A quantidade de "lembretes" para classificar esgotaria rapidamente a paciência familiar. O balanço era desanimador. Os "lembretes" ou reflectiam desavenças entre irmãos a aguardar a mediação paternal, ou acriónias sublimadas entre os adultos. O projecto foi suspendido.
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(Nota: «MY FUNNY VALENTINE» é uma lindíssima execução de piano do Bernardo Sassetti, incluida no CD «INDIGO»)

9 comentários:

sonjita disse...

Bem... deliciei-me com esta crónica matinal... As relações nunca foram fáceis e classificá-las pode tornar-se um verdadeiro enigma.

BJokas

Anónimo disse...

como se não bastasse ler, tem uma das minhas músicas favoritas :) um grande beijinho e boa semana, duarte.

Maria Clarinda disse...

Excelente, adorei..ah...esta coisa de relações!!!!
Sabes só acho que classificá-las...bem...
Jinhos no coração.

Rui disse...

Não havia o projecto de ir para as águas do gadídeo. Pudera, não houve protestos, aceitaram logo as condições, mesmo não gostando delas (não as percebendo?). Devia ter havido manifestação, conferências de imprensa com ataques pessoais e adjectivação dura colocada no correio, em panfletos anónimos. Tudo acabaria numa versão suave (inútil?) em que todos ficariam satisfeitos com a vitória (derrota?). E, claro, pouco depois o projecto seria suspenso.

A Respigadeira disse...

Está excelente! Gostei mesmo muito deste texto.

Beijinhos.

jorge esteves disse...

pelo menos é uma pista: no (muito!....) antes, não havia frigoríficos; logo, não havia nem lembretes, quanto mais quadrados!... Daí que a função era doutro modo!
Mas isso isso invalida a (interessante) crónica, é claro!...

abraço!

Carla disse...

maravilhosas estas palavras...se é difícil relacionarmo-nos connosco, imagina como as coisas se complicam quando há outras pessoas envolvidas...os seres humanos são bem complicados
beijos

Isamar disse...

Um post longo mas muito engraçado. Como funciona uma família de quatro elementos. Não é fácil ser-se mãe.

Beijinhos

segurademim disse...

a isabelinha tem muito que aprender

mas está no bom caminho para o integrado relacionado sempre em alta memorável

os classificados são amarelos???