sábado, 5 de abril de 2008

O Trombonista

(Gentileza Google)




«Música (Do grego: musiké téchne):
É uma sucessão de sons e silêncio
organizada ao logo do tempo»
Wikipedia




OS SONS


No autocarro para casa, se vier com o estojo do trombone, sentar-me-ei se houver um lugar vago junto a corredor. Pedir para ocupar a vaga junto à janela, não. Ter de apoiar o estojo no colo chateia-me. Além disso, constrange quem estiver ao meu lado.

Conheci a Dulce no autocarro. Sentada junto à janela.
Alheada.

Posei o estojo no chão. Sentei-me. Só cinco minutos depois é que olhei para ela. Vestia com sobriedade: camisa verde pérola, um casaco de malha ligeiramente mais escuro, suavemente pousado sobre os ombros e uma saia verde forte. Cabelo castanho claro levemente anelado, curto. Brincos minúsculos, rutilantes. Mais tarde, quando lhe devolvi o casaco de malha é que reparei naqueles enormes olhos.


Presto:


Quinze minutos depois pediu-me licença para sair. Quando o autocarro arrancou reparei que tinha deixado o casaco no banco. Apanhei-o. Agarrei no estojo e precipitei-me para o motorista «Pare, se faz favor. A senhora que acabou de sair esqueceu o casaco!»

Andante molto maestro:


Corri. Era desnecessário «Esqueceu-se do casaco...» Ela condescendendo «Ah! Cabeça a minha...Obrigado!» Afinal até íamos para o mesmo sítio e podíamos aproveitar para conversar.


Allegro con brio:


Os passeios repetiram-se. Trocámos ideias, confrontámos projectos, partilhamos afectos.


Exultate, jubilate:


Sendo o estado de benquerença tão sublime, confinámo-nos a uma residência. A Dulce veio cá para casa. Fartei-me de tocar. Ela adorava. Sentia-me como G. Maupassant «Eu ficava anelante, tão ébrio/ de sensações que a perturbação/ dessa embriaguez fazia delirar/ os meus sentidos. Na verdade já não/ sabia se respirava música, se ouvia/ perfumes ou se dormia nas estrelas»



O SILÊNCIO


Staccato:


As variações de humor conduzem as atitudes. É sabido. Falamos menos, alegramos-nos pouco. A rotina esmaga-nos. Alterar comportamentos, alivia-nos, é certo. Nem sempre restitui a alegria.

A Dulce falava cada vez menos. Eu ensaiava por impulsos. Aborrecia-me.

Custava-me o desencanto da Dulce. Ela não ajudava. Eu não encontrava maneira de desanuviar. Parecíamos dois meninos desorientados pela perda do colo.



O TEMPO


Lacrimosa:

A concepção comum do tempo é indicada por intervalos ou períodos de duração. Éramos alternadamente loquazes e silentes. Mas sem domínio sobre esses comportamentos. Sem qualquer sintonia, também. A euforia de um não vencia a soturnidade do outro. Nem nos contagiávamos! Dir-se-ia estarmos apatetados pela perda do espaço-tempo do nosso universo.

Enquanto fumo aqui à varanda -- O tabaco está a um preço de agiota! -- penso na Dulce -- Sem me importar que a cinza caia sobre a roupa ou sequer que a minha ex «Bardamerda para ela!» que acabou de ligar «Voltaste a pendurar roupa na vara do trombone?» -- penso em nós. Ela saiu e voltou a esquecer-se do casaco de malha. Desta vez vou guardá-lo. Correr também cansa!


Joaquim Allegro


10 comentários:

Teresa Durães disse...

o desenvolvimento de muitas famílias conduzem com esta histórias muito bem escrita

Rui disse...

Estamos sempre sujeitos a ser surpreendidos por uma sinfonia. E a ser convidados a participar nela. Se depois temos fôlego para o trombone ou se gostam da nossa música, é que é mais complicado.
Uma coisa é certa: há que manter o trombone afinado, dando-lhe uso.

segurademim disse...

é um instrumento simpático o trombome
difícil de acomodar nos transportes públicos é mais simples na intimidade


coragem a da dulce que ainda conservou o casaco algum tempo...

mfc disse...

O Tempo é assim mesmo. Estraga tudo.

pin gente disse...

acredito no virar do disco...
abraço

Maria Clarinda disse...

Excelente texto com os compassos perfeitos formando uma sinfoniua. Parabéns. Jinhos mil

Anónimo disse...

dulcíssimo :) beijinho, duarte.

sonjita disse...

A folia inicial de uma relação nunca dura muito tempo... só depois dela passar é que conseguimos claramente ver se existe a tal empatia para continuar. Se não existir não vale a pena deixar casacos para trás :)
BJokas

Alberto Oliveira disse...

... os tempos musicais estão muito bem definidos em contraponto com a música do quotidiano.
Sendo verdade que os tempos não estão para "muitas notas", é sempre bom saber que ainda há quem use a pauta para escrever "allegros", que alegram algumas tristezas.

Por coincidência, editei ao fim do dia de ontem um texto com música... de sopro.


abraço.

Nilson Barcelli disse...

A história está contada de uma forma excelente.
Gostei a valer, foto incluída.

Bom resto de semana, abraço.