quinta-feira, 28 de agosto de 2008

CORPO



«CORPO: Todo o pensamento, toda a emoção, todo o interesse suscitados no sujeito apaixonado pelo corpo amado».


Proust: «Assalta-me, por vezes, uma ideia: ponho-me a examinar longamente o corpo amado (como o narrador diante do sono de Albertina). Examinar quer dizer revistar: revisto o corpo do outro, como se quisesse ver o que há lá dentro, como se a causa mecânica do meu desejo estivesse no corpo adverso (pareço-me com esses garotos que desmontam um despertador para saber o que é o tempo)...»

«Via tudo do seu rosto, do seu corpo, friamente: as pestanas, a unha do dedo do pé, a finura das sobrancelhas, dos lábios, os olhos, um determinado sinal, uma maneira de estender os dedos ao fumar; estava fascinado -- não sendo o fascínio, em suma, senão a extremidade do desprendimento -- por essa espécie de figura colorida, de faiança, vitrificada, onde podia ler, sem nada compreender, a causa do meu desejo.



In:
Texto: «FRAGMENTOS DE UM DISCURSO AMOROSO» BARTHES, Roland; Ed. Edições 70
Imagem: «Mulher Sentada Com A Perna Esquerda Dobrada» 1917; SCHIELE

domingo, 24 de agosto de 2008

BÚZIOS


O Pedro aproximou-se, muito excitado «Clarinha, és capaz de guardar um segredo? Promete que sim! -- Claro que sou! Do que se trata?» O Pedro fez uma pausa. «Entrei, por acaso, no quarto do avô. Sabias que ele tinha uma colecção de búzios? -- Sabia! -- Não disseste nada, porquê? -- Não calhou! -- Encostaste algum ao ouvido? -- Não! Limitei-me a ver e saí. E tu? -- Nem imaginas como se ouve o mar! Queres ir lá experimentar? -- Agora? -- Sim! -- E se o avô nos surpreender? -- Está a dormir na sala. Nem sonhará que lá fomos. Bóra lá, Clarinha!»


Sobre a cómoda encontrava-se mais de uma dúzia de búzios. De todos os tamanhos. Únicos. Uma colecção lindíssima. «De certeza que o avô não tem apenas estes, Pedro. -- Mas é claro! -- Onde estarão? -- Estes são os preferidos dele. -- Se soubéssemos onde guarda os outros, faríamos a nossa escolha, a nossa colecção. Não me digas que não gostavas de ter uma. -- Claro que sim! -- Qual foi o que encostaste ao ouvido, Pedro?» O Pedro agarrou num búzio de tamanho médio «Este!» Uma brisa quase imperceptível fazia sentir-se. Nem chegava a ser um assobio. Ténue. Quase uma melodia. Um suave marulhar de ondas, indolentes, negligentes, a estenderem-se até à praia, sobrepunha-se. A Clarinha extasiava. «É numa praia assim que eu sempre imaginei estar. Única. A exigir de todos os meus sentidos o máximo. A felicidade pode ser isso!» O Pedro ficou espantado. Encostou o búzio ao ouvido e confirmou. A praia, o mar, a suavidade quase imperceptível da brisa. Estranha. Tamanha quietude. Quando se preparava para devolver o búzio à Clarinha, rasante, um ruidoso bando de gaivotas pareceu sobrevoá-lo. Sobressaltou-se. «Vem aí uma tempestade, Clarinha.» Nem chegou a fazer a entrega do búzio à Clarinha. Foi sugado. «O quê?» A Clarinha conseguiu evitar que o búzio caísse ao chão, mas já nem chegou a encostá-lo ao ouvido. Também ela foi sugada.


O Faísca sentiu de imediato o desaparecimento deles. Não parou de ladrar. Foi ao sofá onde o avô fazia a sesta e, insistente, ladrou mais. Levou uma bengalada. Restou-lhe voltar ao quarto dos búzios e lá permanecer, gemendo, à espera. Inconsolável.


Envolvidos em tamanho turbilhão, a Clarinha e o Pedro choravam e lamentavam a má sorte de escutar búzios. Mas como não há mal que sempre dure, já em alto mar, um cardume de golfinhos socorreu-os. Fazendo toda a sorte de acrobacias e brincadeiras garantiu-lhes segurança e apaziguou-os. Foram levados a um coral. A Clarinha quis saber onde poderia encontrar o Nemo. Daí, vogando mar fora, sem se aproximarem, o Pedro imaginou que um repuxo, desenhado lá longe, seria o do Moby Dick. Mas logo se desiludiu. Perscrutado o horizonte, não se avistava The Pequod, o barco do capitão Ahab.
«Estes mares não são de confiança, Pedro.» Disse a Clarinha. Nessa noite, foram levados a uma enseada. Aí permaneceram numa gruta, sob vigilância, à distância, dos golfinhos. «Achas que podemos passar por marinheiros, Clarinha? -- Não sei. Acho que não! Onde está o nosso barco? -- De certa maneira, somos náufragos, não é? -- E então? -- Há quem diga que estes mares estão infestados de sereias... -- E depois, Pedro, que mal nos farão? -- A ti, nenhum, Clarinha; a mim, não sei! Cantam lindamente. Ninguém lhes resiste. Arrastam-nos para o fundo do mar, para as suas cavernas. Satisfazem-se, a seu belo prazer. De lá, nenhum marinheiro voltou para contar... Sabias?»
Sem que dessem conta dele, o Calypso cruzou a enseada e seguiu. Já tinham adormecido.


Mal o avô saiu do quarto o Faísca entrou e foi farejar insistentemente cada um dos búzios.


De manhã, a Clarinha foi a primeira a acordar. Sacudiu o Pedro «Achas normal este vento frio, Pedro?» Estremunhado, o Pedro não reagiu logo. De facto, soprava um vento arisco. O céu estava carregado de nuvens. O sol encoberto. A vazante, tão acentuada, assustava. «Onde andarão os golfinhos?«
De repente houve um enorme tremor de terra. A maré recuou ainda mais. A Clarinha gritou «Vem aí um tsunami. Só pode ser, Pedro. Fugimos para onde?» Atarantado, às voltas, apesar de acentuadamente escarpada, quase inacessível, gritou «Para a falésia, Clarinha! Corre, Corre, CORRE!!!»
Foi no instante em que a onda gigante, galgando a praia e ameaçando destruir tudo, num aluvião apocalíptico, que o Faísca conseguiu identificar o búzio onde eles se encontravam e, numa lambedela rápida, inverter a sua posição.
A Clarinha e o Pedro jamais entenderão o rodopiar da falésia. Atordoados, enregelados, tremendo de pavor, foram surpreendidos por uma enorme língua de cão a acariciá-los, a restituir-lhes calor e segurança. Uma língua amiga, afagando-os e livrando-os do torpor, da aflição por que passaram. Era o Faísca. Libertava-os da exiguidade do búzio, da armadilha da fantasia.

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Ilustração: Gentileza Google


quarta-feira, 20 de agosto de 2008

«CONFISSÃO»



«Escrever pode ser uma óptima desculpa para quem na vida não tem qualquer esperança. É uma maneira de preencher uma sombra e há momentos em que um beijo escrito vale por muitos.

É sempre a vida, é claro, mas com a distância limpíssima das palavras. E tudo sofre de uma insuficiência que a arte tenta reparar, e falha.

Eu espero que a esperança um dia venha e tudo isto não seja mais do que um exercício de gramática.»


In:

«NOS TEUS BRAÇOS MORRERÍAMOS»

Pedro Paixão

Ed. Livros Cotovia

Ilustração: Gentileza Google
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(Vidé Edição de 27 Junho 2007)


sexta-feira, 15 de agosto de 2008

BOLAS DE SABÃO


A.

«Ensinas-me a lançar bolas de sabão, David?» Sobressaltei-me. Disfarcei. Disse-lhe «Nem penses, Diogo!»

Somos quatro irmãos: a Denise é a mais velha. O Diogo é o nosso mano mais novo. Tem menos oito anos do que eu e menos três e meio do que o Daniel.
Ainda hoje tento e não consigo perceber qual é a relação entre o nascimento do Diogo, a tarde em que choveu enquanto eu lançava bolas de sabão, e o aparecimento de uma cegonha no nosso jardim.

Correndo o risco de ser "o puto que chateia", falei com a minha mãe sobre o assunto e jurei para nunca mais. «Pedi-te que tomasses conta do mano, não pedi, David? Os resultados estão à vista! Preocupaste-te apenas em lançar bolas de sabão. O Danielzinho desapareceu. Eu ia morrendo, percebes? Fazes ideia o que me custou impedir o teu pai de te sovar até à morte? Ora, David! Há mais alguma coisa que queiras saber da mãe? Mais nada, pois não! -- Óptimo! -- A mãe vai repousar. Sinto-me tão cansada, filho!» Eu fui para debaixo da pérgola. Sentei-me na cadeira de baloiço dela. Ali estive sei lá quanto tempo a olhar para a relva mal aparada onde tanto brinquei. O que me diverti. Aqui na zona nunca houve quem enchesse e lançasse bolas como eu. Bem, o meu pai era imbatível. Mas perdeu a primazia. As viagens de longo curso impedem-no de competir. Não renovará.

B.

Sábado. Ao almoço combinou-se que eu ficaria em casa, cuidaria do Daniel enquanto a mãe e a Denise fossem ao Centro Comercial. Nem demorariam duas horas sequer. «Não te afastes do mano, David. Nem um minuto, filho!» «Não será melhor pedir à vizinha que acompanhe os manos, venha de vez em quando saber se estão bem, mãe?» Disse a Denise. Peremptório «Vai descansada, mãe!»

2.

Naquela tarde eu estava em grande forma. Cada novo ensaio acentuava a perfeição das bolas. Uma vez no ar o que elas duravam. Não rebentavam facilmente. Cheguei a lançar bolas siamesas. Pena foi que ninguém estivesse a assistir. Estive inexcedível!
Quando precisei de renovar o sabão líquido, passei pelo carrinho de bebé onde estava o Daniel e disse-lhe, apesar de ele estar a dormir «O mano já volta, Dani. Não chores!»
Enquanto fui à casa de banho encher o depósito da bomba das bolas de sabão a vizinha apercebeu-se que começara a chover. Espreitou o nosso jardim e estranhou ver o carrinho abandonado. Levou-o para debaixo da pérgola enquanto eu saía, em sentido oposto, pela porta da cozinha. «Só faltava a merda da chuva!» murmurei completamente esquecido do «Dani», do carrinho de bebé, de tudo, menos das bolas de sabão.
Chamou. Ninguém respondeu. «Valha-me deus!» Deixou post-it na porta do frigorífico «O Daniel está comigo. Dulce.»
Eu rectifiquei a quantidade de água no recipiente e retomei lançamento de bolas de sabão. Inexplicavelmente, elas era menos exuberantes, duravam menos, vogavam penosamente, já nem fui capaz de fazer uma única série de siamesas. Deixara de chover. Como explicar tão fracos resultados? Subitamente, lembrei-me do «Dani». O carrinho desaparecera. Corri para casa. Nada! Voltei ao jardim. Ninguém! Do carrinho nem réstia de sinal. No ar vogava uma bola de sabão enorme. Estranha. Diferente de todas as que soprara. Não era cristalina. De conteúdo invisível. Fiquei tão confuso, atrapalhado, imobilizado, nem conseguia chorar. Nada! Nem me ocorreu pedir ajuda à vizinha Dulce. Mas ela arranjou maneira de falar com a minha mãe «Assim que puderes vem para casa, Dália. Encontrei o teu bebé à chuva e não faço ideia onde pára o David!»

3.

Fui sovado e posto de castigo no meu quarto, no primeiro andar da casa. Fiquei proibido de lançar bolas de sabão até o meu pai chegar -- Uma eternidade! Eu não fazia a mínima ideia de quando ele partia, quanto mais quando chegava! -- Uma coisa era certa, mal chegasse eu tinha garantida nova sova.
Apenas saía do quarto para tomar as refeições.
Uma manhã, antes do almoço, reparei que a bola de sabão opaca permanecia sobre a nossa casa. Porque seria? E se eu lançasse bolas, vogando estas, ela acompanhá-las-ia? Teria de obter autorização da minha mãe. «NÃO! Nem penses! -- O teu pai chega amanhã. Pede-lhe! -- Até lá, estás proibido de sair do quarto.» «Posso, ao menos, fazer modelação de barro?» Zangadíssima «Ai de ti que sujes alguma coisa!»
O meu pai chegou. Ralhou. Dobrou a duração do castigo. Eu resignei-me a fazer carros de barro e a colocá-los no parapeito da janela a secar. Fossem verdadeiros e seria ao volante do mais veloz que eu encetaria a fuga. Então reparei que a bola de sabão desaparecera. Na chaminé da nossa casa, uma jovem cegonha iniciara a construção do ninho. Para fixar os primeiros pauzinhos à chaminé serviu-se do barro das modelações. Tendo acabado de cumprir o castigo, reparei que ninho estava concluído. Muito mais tarde, um ovo era chocado.

Agora, pergunto-me «O que terá tudo isto a ver com a gravidez da minha mãe e o nascimento do Diogo?»
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Ilustração: Gentileza Google


segunda-feira, 11 de agosto de 2008

O Duplo Voo (Para desespero de Ícaro)




«(...) a finalidade da análise histórica é pesquisar as origens da alienação no mundo moderno, o seu duplo voo da Terra para o universo e o do mundo para dentro do homem, a fim de que possamos chegar a uma compreensão da natureza da sociedade, tal como esta evoluíra e se apresentava no instante em que foi suplantada pelo advento de uma nova e desconhecida era.» (Pag. 17)

(Cientificamente a era moderna começou no século XVII e terminou no limiar do século XX; politicamente, o mundo moderno em que vivemos surgiu com as primeiras explosões atómicas.)

Fonte:
«A CONDIÇÃO HUMANA»
Hannah Arendt
Ed. Relógio D'Água
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Ilustração:
Gentileza Google

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

O Assalto


1.

Um indivíduo, tenso, crispado, acerca-se do balcão «Moça, tou t'assaltando. Nada de safadeza, tá. Passa toda grana pr' ó saco. Sem molesa, 'viu!» enquanto o cúmplice imobilizava os clientes do banco e demais funcionários.

Mal podendo acreditar, a senhora controlou-se e respondeu «Esta agência, o BES, não tem dinheiro. Só tem negócio, lucro!» Incrédulo, o assaltante reagiu «Ué! Como assim? Banco só tem qui tê, né?!» Pausa. A senhora não respondeu. Mal esboçou um encolher de ombros. «Derlei, você escutou qu'ela dissi?!» O cúmplice aproximou-se «Oiça, garota. Faça o qu'ele tá te pedindo, 'viu. Si bancar comigo, vou sê duro. Não é hora de brincadêra, não.Viu! Jógo chumbo em 'oncê. Logo, logo!»

2.

Quando Moita Flores chegou ao estúdio da TV para comentar a ocorrência, já os reféns estavam algemados, o dispositivo policial montado e os assaltantes contrafeitos com o facto de na agência bancária não se fazerem depósitos ou levantamentos de dinheiro. Como suportar tamanho logro? A premonição de morte ter-se-á instalado!

3.

Agora, sabendo como toda a operação terminou, é fácil acrescentar que: (i) aquele diálogo é inverosímil, (ii) se o preço do dinheiro está caríssimo, o da ignorância e burrice é letal; (iii) tendo a operação corrido tão bem, os sitiantes estão de parabéns: preservaram os reféns e anularam os assaltantes. A Polícia fez saber que não hesitará em situações equivalentes. Sendo certo que assaltos a bancos hão-de repetir-se, ficou a saber-se também que haverá resposta.


segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Como?!


Ao passar entre as mesas da zona livre para refeições no átrio do centro comercial, uma senhora deixou cair a aliança.
Aflita, precipitou-se para a apanhar -- Esforço inglório! -- A aliança, ao tocar o chão, saltou e desapareceu.

O homem que estava sentado à mesa, com o casaco pousado nas costas da cadeira, distraído, e por não ter ouvido o tilintar da aliança, estranhou ver a senhora, de cócoras, ao seu lado.

«A aliança saltou para o bolso direito do casaco desse senhor!» Disse um jovem que passava.
«Como?!»

Seria possível? O senhor levou a mão ao bolso do casaco -- Era verdade! -- A aliança lá estava. Não era dele. Devolveu-a à senhora.

Ambos regozijaram. Ele: como explicar a posse de duas alianças, uma no anelar; outra, no bolso do casaco. Ela: uma aliança não se solta do dedo. Se a ouviu cair, não a recuperou porquê?