5.Chovia copiosamente quando amanheceu.
O Paulo levantou-se. Correu os cortinados. Uma ténue luminosidade pairou.
Na praça, de costas para a sua janela, uma jovem de anorac escarlate, segurando firmemente pela trela um cão de médio porte, recebia esclarecimentos de um homem.
O cão encharcava.
Era o Silky. Não havia dúvida. E ela?
Enquanto se vestia à pressa, a jovem era recebida pela D. Eunice e o Sérgio entrava na pastelaria do Lencastre.
O Paulo correu escada abaixo, a galgar degraus, em vão.
O cão da jovem ensaiou uma corridinha para a porta. Não chegou a ladrar.
Quando abriu a porta da rua para gritar «Isabel, vem para dentro. Um aguaceiro destes faz mal!» a praça já estava vazia.
Profundamente desiludido, regressou ao apartamento. Durante imenso tempo, não saiu da janela. Não circulou vivalma na praça. O desespero aumentava. Telefonou ao Lencastre: «Sim! Olá Paulo... Nem aqui nem na praça vi mulher com cão... Queres falar com o Sérgio? Se a vir, ligar-te-ei. Fica descansado.» Antes de desligar «Vem cá abaixo tomar um café, aparece!»
A chuva abrandou. Sentiu algum alento. As pessoas começaram a cruzar a praça.
Ao contrário do habitual, D. Eunice não foi à pastelaria do Lencastre. Saiu e acompanhou a jovem até à estação de comboios.
Caminhavam pelo passeio quando se lhes dirigiu um jovem a promover máquinas fotográficas. «As senhoras podem tirar uma dúzia de fotografias. Trata-se de um modelo descartável. A revelação é grátis.» Entregou uma amostra a cada uma. «Peço apenas que coloquem a vossa prenda com a nossa marca virada para mim enquanto fotografo as felizes contempladas. "Cheese!" Já está. Para minha segurança, deixem-me repetir. "Chees...!" Obrigado!» Continuaram pelo passeio, sem atravessarem a praça, fora do alcance visual de Paulo.
D. Eunice regressou a casa por volta da uma da tarde. Vinha eufórica. Acabara de alugar os dois apartamentos do 1º andar à jovem professora.
Já nem chovia.
Estranhamente, havia água no chão. Subiu a primeiro andar e os seus receios confirmaram-se. Abundante, a água vinha do sótão, de casa do Paulo. Correu à pastelaria «Lencastre, vem depressa. Ajuda-me. Tenho uma inundação no prédio... Ou pior!»
Tocaram à campainha, chamaram, bateram fortemente na porta, tentaram arrombá-la. Nada. Ninguém respondia. A água corria continuamente.
A D. Eunice foi a casa buscar a chave-mestra e os piores receios confirmaram-se: o Paulo jazia na banheira. Cortara os pulsos. No chão, junto ao x-acto encontrava-se, amarfanhada, uma fotografia de polaroid da jovem de anorac escarlate, segurando firmemente pela trela um cão de médio porte, a receber esclarecimentos de um homem. Na parede da sala, ao lado da foto da Isabel, várias outras, mal se distinguindo daquela que fora abandonada no chão da casa de banho. Tratar-se-ia de gémeas? -- Nem pensar!
6. Resgatado o cadáver, a polícia fez as recolhas preliminares e selou apartamento. A autópsia confirmaria o suicídio.
7.
Reveladas as duas fotografias tiradas na praça, a D. Eunice só aparecia na primeira. Na segunda, muito nítida, a jovem tinha um lenço de seda escarlate, displicentemente colocado à volta do pescoço e envergava um anorac azul. Vestia calças de ganga e calçava ténis de marca.
O louro do cabelo era menos acentuado e o corte idêntico ao da Isabel.
A senhora de idade avançada não se lembrava do lenço de seda. Não podia lembrar-se. Vira-a de costas. Decidida «Foi essa menina que vi, sim. Agora me lembro desse anorac azul. Trazia-o atado a cintura. Não tenho qualquer dúvida. Era ela. Caminhava como se estivesse a passear. A cor do cabelo... Acho que era escura. Assim alourada, não!»
O homem que lhe deu informações na praça, sob o aguaceiro «Do lenço de seda, não me lembro. O zip estava corrido até ao pescoço. O cabelo era escuro e curto. O anorac era escarlate. Mas... Deixe ver melhor... Ah! A gola é que era azul, por dentro.»
O Artur estarreceu quando lhe foi mostrada a fotografia. «Foi essa mulher que desencadeou esta tragédia... É ela. Reconheço-a. Vinha da falésia com o anorac atado à cintura, sim. Este corte de cabelo é o mesmo. Ela pintou o cabelo, não foi? O que é que conseguiram saber do passado dela?»
Recolhidos os testemunhos, o polícia foi lacónico «A esta hora, essa senhora estará a ser presa.»
8.
A Isabel, o Paulo e a Rita ensinaram na mesma escola, no regime de triénios.
Não é possível saber se a Isabel chegou a ter conhecimento do envolvimento da Rita e do Paulo ou, fingindo desconhecer, para não escandalizar, uma vez que estavam no terceiro ano de ensino naquela escola, a Rita no segundo, aguardou que a mudança resolvesse os problemas do triângulo.
A Rita soube que eles partiram e reagiu. Fez ameaças. Chantageou o Paulo. Escreveu cartas anónimas à Isabel.
9.
Quando soube que eles se instalaram na casa da D. Eunice e davam aulas na Vila, contratou um detective particular para vigiar a rotina do casal. Pagou ma fortuna e recebeu um relatório cheio de imprecisões, de invenções.
Ao alugar os dois apartamentos do 1º andar excluía a possibilidade de alguém se interpor entre ela e o Paulo, no sótão. As vagas abertas naquela escola eram preenchidas com dificuldade. A apresentação da sua candidatura teria muitas chances de ser bem sucedida. Havia, portanto, que fazer aproximações sucessivas, conhecer as amizades do casal, as suas rotinas. Ser discreta. Tê-lo-á sido meticulosamente.
A Isabel adorava passar uma tarde à beira mar, ou numa falésia, a ler e a ouvir música. A Rita sabia disso.
O que foi feito era o que havia para fazer.
Aproximar-se da Isabel. O Silky já a conhecia, reagiria afavelmente. Um simples empurrão, primeiro da Isabel, a seguir do cão, seria complicado desvendar. Deixaria o Paulo devastado, é certo, mas o tempo e a casual proximidade resolveriam o desamparo que viesse a experimentar. Consumadas as quedas, retirar-se-ia.
Para empurrar a Isabel terá arranjado um pretexto para prender, pela trela, o Silky, ao guarda-lamas do carro. Ela teria de abandonar a falésia antes do cão, reagindo, chegar a alguém. Ela saiu.
O cão conseguiu libertar-se e pedir socorro; a maré não chegou a subir o suficiente para ocultar o cadáver; o grau de prontidão do INEM e dos bombeiros ao pedido de socorro do Paulo e do Sérgio foi exemplar.
Mais tarde, para poder reaproximar-se e evitar ser reconhecida, havia que fazer desaparecer o animal. O que foi fácil. Porém, regressar com um cão simulando um duplo da Isabel e do Silky, ousou em demasia. Ou acharia que devia proteger-se? -- Não se sabe.
Ao instalar-se no sótão, conhecendo-a, o Paulo nunca terá tido dúvidas quanto ao seu regresso. Ela voltou, estoirando com o programa de recuperação psicológica dele.
A Rita terá encontrado uma maneira de o pressionar.
Uma quantidade enorme de objectos e indícios bem como os computadores pessoais de ambos estão sob reserva para averiguações.
Sabe-se que os sintomas de loucura da Rita já transpuseram a prisão onde preventivamente foi instalada. Errou na avaliação de resistência emocional do Paulo. O suicídio dele tê-la-á surpreendido.
Nestas condições resta-lhe o quê, suicidar-se também, lamentar-se por ter lutado por um homem que não aguentou a pressão da separação depois de lhe ter prometido sabe-se lá quê, alhear-se e cumprir a pena, como uma zombi, ou ser inexoravelmente um caso psiquiátrico?
Sabe-se que numa das sessões de interrogatório entrou em histeria quando a polícia fez entrar o Silky -- tê-lo-á suposto morto? -- arrastando uma sobra do guarda-lama pela trela e um lenço de seda ao pescoço, igual ao que ela usou na falésia.