quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Letras: «AN»

«Ano Novo»



2008

Ninguém sabe o que fazer dele!

Perdendo o "8"
Unindo os dois "00"
Teme-se o que será 2009
É que a previsão da crise foi um "flop" e um embuste.
Não tendo havido capacidade para evitar a hecatombe financeira como é que agora se anseia pelo sucesso (?!) das medidas para a amenizar?
Serão suficientes para evitar uma tragédia social global?

A crise não é comparável à de 29... Ver-se-á!
Graficamente, os dois zeros, adjacentes, deitados formam um "oito" ou "infinito".
Embutidos em 2009, para os pessimistas, ou realistas, quem sabe, é mau augúrio: «Estaremos feitos num "oito" por quanto tempo?!... Restar-nos-á um "29", lúgubre e sombrio...»

Há uma exigência incontornável e persistente: um apoio equiparável ao concedido ao sistema financeiro deve ser garantido aos mais desprotegidos.

BOM ANO DE 2009!



sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

FELIZ NATAL !


Desejo o melhor para 2009


Rever-nos-emos a partir de Janeiro 09


Beijos e abraços

domingo, 7 de dezembro de 2008

GPS

1.
Robert de la Grive (*), jovem fidalgo piemotês, naufragou nos mares do Sul (Pacífico) em 1643, em busca do ponto fixo, o meridiano antípoda -- a 180 graus de Greenwich -- onde supostamente se encontram as ilhas Salomão, conhecidas na Bíblia como fonte de grande riqueza.
Após o seu naufrágio, Robert encontra um barco deserto que está ancorado numa ilha à beira desse meridiano.
Gaspar -- Sábio de formação religiosa -- misteriosamente encontra-se sozinho no barco recheado de relógios e outros artefactos técnicos não muito comuns.

Robert e Gaspar travam fabulosas discussões, onde se resume o conhecimento da época. Gaspar consegue defender e conciliar todo o tipo de conhecimento científico e religioso, mostrando uma erudição imbatível para a explicação da existência de um dia antes como forma do aparecimento e desaparecimento das águas do dilúvio bíblico (*).


2.
A nossa posição sobre a Terra é referenciada em relação ao equador e ao meridiano de Greenwich e traduz-se em três números: a latitude, a longitude e a altitude.

O GPS é um sistema de posicionamento geográfico que nos dá as coordenadas de um lugar na Terra, desde que tenhamos um receptor de sinais GPS. (É indispensável a utilização de satélite.)


3.
Em o3 de Abril de 1973 Martin Cooper causou furor em Manhattan. Muitos Nova-Iorquinos pararam, boquiabertos, porque viram um tipo a falar ao telemóvel na rua.


4.
O sucesso de vendas dos telemóveis deveu-se ao facto de as pessoas terem percebido que dispor de um gadget daqueles as colocaria no centro do mundo.
Irreversivelmente.
Livres da prisão da rede fixa e com tantas prerrogativas quem ousaria resistir?
Um verdadeiro golpe de asa!

Se vivemos na Aldeia Global, afinal quem são os nossos vizinhos? (**)

O tal centro é definido pelo arco de círculo do espectro onde funciona a rede escolhida para comunicar.
Estabelecido o nosso centro, o que estiver no seu exterior é o vazio, a periferia?
A intersecção dos arcos de circunferência de cada um dos operadores de redes móveis, definindo zonas comuns de comunicação, por intersecção dos respectivos arcos do espectro, também esgotariam as zonas presuntivamente vazias.
Não havendo comunicadores e comunicações, jamais existirão periferias.

Havendo centro sem periferia como resolver a novidade comercal de GPS nos telemóveis?

Estando cada comunicador no seu centro necessita de se deslocar para onde e porquê?
Para praticar a transumância?
Pela inqualificável ânsia venal de enriquecimento ou pelo desiderato frívolo de omnipresença ou omnipotência -- É por estas razões que os comunicadores prescindem da sua privacidade, dizendo tudo e o desnecessário ao telemóvel?
Ou, sinceros tementes, num angustiado desamparo de Babel expõem-se à fúria de uma incerta e inclemente reprise do dilúvio?


(*)
«ILHA DO DIA ANTES»
Umberto Eco
Ed. Difel

(**)
«Se vivemos na Aldeia Global, quem são os nossos vizinhos?»
Era este o spot do programa da SIC Notícias «A SOCIEDADE DAS NAÇÕES».

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Saudades da neve?


Gentileza Google

No fim de semana passado não terá escapado a um único meio de comunicação social o relato da queda de neve, dos primeiros bloqueios de estrada, dos inevitáveis acidentes de viação dela decorrentes.

O branco imaculado da neve pode ser romântico, pode tornar-nos sonhadores, acalentar os sonhos de Natal das crianças. Se lhe for adicionado um Pai Natal , um grupo incansável de renas e o tilintar sincopado de chocalhos e sininhos, o sonho tornar-se-á irresistível.

Mas a neve é gelada, dura, molha que se farta e quando começa a derreter, chegando a transformar-se em gelo, é perigosa.

Também é lúdica e torna espectacular a prática desportiva de Inverno.

Numa tarde fria, jamais trocaria o calorzinho da minha salamandra por um combate de bolas de neve num campo inóspito e hostil da Torre na Serra da Estrela.
Aliás, a única neve que me derrete é a das fotografias das tampas das caixas de chocolate sem deixar de considerar the wisdom of Forrest Gump «A vida é como uma caixa de chocolate. Nunca se sabe o que se vai encontrar!»

Pousada no meu colo, na caixa resta, aconchegado entre palhinhas sedosas, um único bombom cujo aroma delicioso da baunilha misturado com o cacau atingiu a perfeição. Devo comê-lo já, esperar ou ... (Cinco segundos depois) «Hum!!!!!»

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

«AS MAIORES IDEIAS SÃO OS MAIORES ACONTECIMENTOS»


«Bacchus and Ariadne»
TICIANO



«O ensaio pessoal pertence a Montaigne, como o teatro pertence a Shakespeare, a epopeia a Homero e o romance para sempre a Cervantes. O facto de o primeiro dos ensaístas continuar a ser o melhor tem menos que ver com a sua originalidade formal (ainda que esta seja considerável) do que com a irresistível franqueza da sua sabedoria. Ele pergunta-nos implícita e incessantemente: terão algum valor os teus pensamentos se ficarem no teu íntimo? A sua resposta, que antecipa a de Nietzsche, é que não. Os pensamentos são acontecimentos. Os prazeres de Montaigne são para o leitor difíceis em última instância, mas imediatamente acessíveis, como os de Shakespeare. Pede-nos que sejamos um leitor forte, e a sua modéstia é uma máscara.
(...)»

(Pg. 111)


Fonte:
«Onde Está a Sabedoria?»

Harold Bloom
Ed. Relógio D'Água

sábado, 22 de novembro de 2008

RELÓGIOS

Sabe tão bem,
manhã cedo,
ao pequeno-almoço,
à hora certa,
uma madalena!

Não
«Em Busca Do Tempo Perdido»
Sequer
«O Tempo Reencontrado»



«Medir o tempo é estabelecer uma cronologia.»



«Tempo

A principal característica do tempo é a irreversibilidade:

- Provoca lamento dos poetas;
- Faz vibrar o aceno fúnebre do «nunca mais»;
- Dá às coisas que nunca veremos duas vezes essa extrema acuidade da volúpia e de dor onde o absoluto do ser e do nada parecem aproximar-se até confundir-se;
- Prova que uma vida vale de uma vez por todas.

As três dimensões do tempo são:
o passado, o presente e o futuro.

Nestas três instâncias há:

- Um presente relativo ao passado:
Memória;
- Um presente relativo ao presente: Percepção;
- Um presente relativo ao futuro: Expectativa.
(Vide. «Confissões»
Santo Agostinho Livro XI Pgs 297 a 315 da INCA)

Enquanto nós podemos agir sobre o espaço, através da rapidez incessantemente acrescida dos meios de transporte, não podemos agir sobre o tempo.

O espaço é o sinal do nosso poder;
O tempo é o sinal da nossa impotência.

A estrutura temporal da nossa experiência é tão constrangedora que o homem sempre sonhou libertar-se dela e o desejo de eternidade se exprime em quase todas as religiões e no comportamento do homem, que procura sobreviver a si próprio através das suas obras ou dos seus filhos.
»





Aproxima-se o Natal.
Porque razão, os promotores de relógios de marcas prestigiadas anunciam os seus modelos com os ponteiros das horas e dos minutos nas «Dez e dez» ou se quiserem, nas «Catorze menos dez»?


Enquanto não descobrir, optarei pelo "Tempo Dali"



Fonte:
- Revistas da semana
- Dicionário Temátio Larousse «Filosofia» Entrada «Tempo» Ed. Circulo de Leitores
- «Confissões» Santo Agostinho Ed. INCM
- «Em Busca Do Tempo Perdido» Marcel Proust Ed. Relógio de Água
Ilustração: Gentileza Google

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Engripado...


Gentileza Google

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

«Em Flagrante Delitro»

Nas máquinas do multibanco está a ser publicitado este vinho da Região Demarcada do Alentejo


Monte Do Enforcado

Viva com paixão!


Um vinho com este nome seria servido n'«O Banquete» de Platão?
Acalentaria «In Vino Veritas» de Kierkegaard?

Em «Reviver o Passado em Brideshead» Evelyn Waugh apresenta uma personagem aristocrática que, quando lhe é diagnosticada uma doença mortal, comenta para os seus botões: «Morrer, eu? Mas se sempre bebi do melhor clarete...!»

«Badenweiler, 2 de Julho de 1904
Ao assistirem aos derradeiros momentos de um colega, os médicos russos e alemães praticam o singular ritual de partilhar uma taça de champanhe com o doente. Não se conhecem as origens deste ritual, que se pode interpretar como um gesto de estoicismo profissional perante a morte ou uma extrema-unção laica. Seja qual for o seu significado, a verdade é que aplicado ao moribundo Anton Tchekov teve o mais inesperado dos resultados. Serviram-lhe o champanhe e, logo após ter bebido o que parecia ser a última gota, Anton caiu para lado, como morto, segundo quanto previsto. Depois, os colegas aproximaram-se para verificar o óbito e deram-se conta de que ele ainda estava vivo, ajeitando-o no cadeirão. Passados instantes, Tchekov abriu os olhos, pareceu não entender por que razão estavam sobre si debruçados três médicos e uma enfermeira com rostos inquisitivos, sorriu e pediu outra taça de champanhe, que prontamente lhe foi servida. O prof. Schworer, dr. Buhl e a enfermeira Fraulein Emilie ficaram suspensos a aguardar o efeito da segunda taça, mas nada aconteceu do que tinham antecipado, considerando o estado de extrema fragilidade a que a tuberculose reduzira o escritor. Antes pelo contrário, as cores voltaram-lhe ao rosto e ele começou a conversar serenamente com os colegas, encantando a enfermeira com a sua bem entoada voz de barítono, que retomara toda a sua vibração. Sentindo a garganta seca, pediu uma terceira taça de champanhe. Os médicos hesitaram, cedendo, por fim, e bebendo com ele, por se tratar da vontade de um homem condenado.
Condenado, sim, mas mais devagar, terá pensado Tchekov. Ele bem sabia que a medicina tinha as suas fraquezas e que desgraçadamente não só não era capaz de encontrar as curas certas, como era incapaz de explicar as curas para as quais não tinha contribuído. (...)»
Fonte: «Os Dias Contados» Jose Sasportes, Dom Quixote


Vou tomar um trago. Voltarei!

sábado, 8 de novembro de 2008

Happy Hours


Gentileza Google
1.
Quando pela primeira vez saímos, fomos à praia.
Novembro mal tinha começado.
A tarde esteve esplêndida, combinando frio e sol.
Céu imaculado.
O vento, mal excedendo uma brisa, amenizava.
Caminhámos longamente na praia.
Chegámos a aproximarmo-nos de grupos de gaivotas sem as sobressaltarmos.

2.
Numa tarde soalheira levámos a Matilde e o Mateus à praia.
Quiseram tomar banho.
Como?
Os surfistas vestem aqueles fatos para se protegerem. Não para tomar banho.
Como convencê-los?
Além disso, as pranchas tinham ficado em casa.
Porque não fazer uma construção na areia.
O que quisessem.

A maré enchia.
A estrela e a gaivota de areia rapidamente foram recuperadas pelo mar.

3.
Não percebo a aversão que os Planos Polis têm aos bancos.
Espalhar bancos na orla marítima é salutar.
Para evitar percalços vimos munidos das nossas cadeiras de praia.

Ainda não temos netos.

O Mateus telefonou para dizer que combinara com a Matilde virem celebrar o aniversário do pai.
Que tal almoçarmos no restaurante do Saragoça?
Este ano calhava-me uma cataplana. Achas que ele é capaz de prepará-la?
Claro que é!

4.
Sabe bem voltarmos a esta praia.
Adoro vir aqui.
Achas que eles gostaram da fotografia das construções na areia?
Acho, sim!
O Mateus mal reagiu.
É o que tu costumas fazer. Resguardou-se!
Quando me beijou, a Matilde quase chorava. Não me dig...
Emociona-se facilmente. Eu sei!
Lembras-te da aflição deles quando a onda veio e desfez as construções?
Como se tivesse acontecido há instantes!


«(...)
Definitiva como um mármore,
a tua ausência irá entristecer as tardes»
«Despedida»
Jorge Luis Borges
Obras Completas Tomo I


«A Senhora sente-se bem?»
Eu não deveria ter voltado a esta praia.
Atrevi-me.
Cuidei ser capaz de me aguentar.

«Posso ajudá-la?»
Agasalhei-me.
Comprei este pacote de castanhas assadas...
A tarde está tão luminosa como a da nossa primeira vinda aqui, a sós;
mais tarde, com os miúdos; no aniversário...
Agora estas lágrimas, porquê?
Poderia já ter viajado lá para baixo.
A esta hora já estaria em casa dos meus filhos.
Mas não, teimosa, resolvi vir...

«Insisto, a Senhora sente-se...»
«Sinto... Obrigado! Quer uma castanha?»


quarta-feira, 5 de novembro de 2008

A MÃO E O GESTO

Gentileza Google

Duas mãos enluvadas mimando um praticante de basketball ensaiavam sucessivos lançamentos.
Determinadas, executavam a curta, a média e a longa distâncias.
Quando os batimentos de bola baixavam a meio da coxa era o drible que singrava.

Três pares de mãos enluvadas, ignorando o par do basketball, estenderam uma rede a meio do ring.
Eram os adeptos de bagmington.
Dois pares adversários colocaram-se em campo para disputarem uma partida sob arbitragem do terceiro par, lá no alto, provavelmente no último degrau de um escadote.

No ring há um par de mãos pendidas, em repouso. São as mãos do praticante de basketball. Estão extenuadas ou sem coragem para desafiarem as praticantes de bagmington.
Enquanto cada par de luvas, no respectivo rectângulo de jogo, se excede para suplantar o par adversário, do alto do suposto escadote, o outro par executa uma curiosa coreografia -- quais catetos de um triângulo rectângulo elevando ao quadrado o esforço para encontrar, numa busca quase desesperada, o quadrado da hipotenusa, -- para assinalar pontos ou, interrompendo o jogo, marcar faltas.
Agora reparo, as mãos de basketball estão erguidas. Presumirei bem se pensar que colocando a toalha a volta da cabeça melhor repousarão, desejando ardentemente que, na próxima vez, os amigos que prometeram aparecer não faltem? -- Talvez!

A seguir, as mãos enluvadas baixaram e, antes de repousarem nas coxas, uma delas parece ter sido descalçada.
Todos reparam no gesto.
O jogo de bagdmington parou.
O desenho da hipotenusa ter-se-á gorado malogrando o esforço dos catetos.
Uma luva mimando um toque no ombro «Vai uma partida de bagmington, amigo?» antecedeu outra luva apontando o indicador aqui e acolá para designar a constituição de pares.
Era isso mesmo que estava a acontecer.
A terceira luva desenhava a rotação de um cilindro imaginário para estabelecer que a constituição dos pares seria rotativa.

No final da segunda partida, a luva de basketball disparou um volei sem resposta. Com o ponto garantido o par venceria a partida. Ninguém duvidava. Porém, a trajectória do volante foi alterada pelo embate de um dióspiro.
Um papagaio, desafiado pela irresistível suculência do fruto, apanhou-o e desapareceu.

Um jovem mimo acabara de encher a boca com um quarto-de-lua de dióspiro. Atrevido, o papagaio roubou-lhe o outro quarto. Não se resignando, o jovem tentou alvejá-lo com a restante metade do fruto.

Deve o jovem alterar o seu desígnio e abandonar a colectividade de Mimos?

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

«Metafísica»


Gentileza Google



«Que ideia tenho eu das coisas?

Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?


Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma


e sobre a criação do Mundo?


Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos

e não pensar. É correr as cortinas

da minha janela (mas ela não tem cortinas)...»


Alberto Caeiro

domingo, 26 de outubro de 2008

«Amendoeira Em Flor»



Quando a Sara me perguntou «Qual é a vantagem de ter duas casas, uma no Algarve e a outra em Lisboa?», eu pousei o talher de robalo grelhado, suspendi o gesto de mais um gole de vinho branco «Vantagem...»

A resposta óbvia seria a sua presença.
Tal como ela em Caminha, porque o Minho é lindo e a Galiza vizinha, prezo os amigos e faço questão de os receber.

«É na «Amendoeira Em Flor», nesta casa, que vejo o nascer e o pôr do sol. Como prescindir de tamanho sortilégio?»

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Escrever

«Meter a vida num livro, tirar as medidas ao tempo. Escrever é isso. Dar uma dimensão convencional à existência. Manipula-se o tempo para efeitos artísticos e assim se controla, falsamente, secretamente, a própria vida. O tempo corre quando o deixamos à solta. Tem de se caçar na ratoeira -- um rato, o tempo -- de um livro, de um projecto, de uma viagem. O escritor sonha com um livro, com uma mulher, com uma cidade distante e imperfeita. Vamos por entre a neve, por entre a chuva, por entre o nevoeiro, no carro dele, a desfazer gelo e luzes. Aonde vamos?
(...)
O sangue do escritor é o tempo. O sangue do pintor é a luz (...)»

(Pg119/120)

In:
«MORTAL E ROSA»
Francisco Umbral
Ed. Campo das Letras

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

«A FACA NÃO CORTA O FOGO»


Gentileza Google


Não se pode cortar o fogo com uma faca.
-- provérbio grego.


«até que Deus é destruído pelo extremo exercício da beleza»


In:
(Pg.133) de

«A FACA NÃO CORTA O FOGO»
Súmula & inédita


Herberto Helder

Assírio & Alvim

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Felicidade


«(...) A brisa, o brilho do dia, há qualquer coisa que tem de repente o odor e a memória de não sei que paraísos. A música inventa-nos um passado que não conhecemos, disse alguém. Também os aromas, a Primavera, as nuvens nos levam de repente a um passado que não conhecemos. Basta inspirar profundamente para fazer emergir do fundo da terra ou do fundo da memória um tempo que está fora do tempo, uma felicidade impossível de recordar. Dela temos apenas a memória: nunca tivemos a experiência. O homem conhece a felicidade por relatos. Por obscuros relatos interiores. A felicidade não pode estar no futuro, porque vamos sempre buscá-la às recordações, trazemos a sua imagem na memória. A felicidade é algo que aconteceu uma vez. Recordamo-la tão intensa e longinquamente que pertence sem dúvida ao passado da espécie. Mas tudo isto se confunde de forma automática e trasladamos o que é apenas uma vaga recordação para um hipotético futuro. A dita felicidade é inexequível precisamente porque a estamos a recordar. Foi.» (Pag. 163)


In:

«MORTAL E ROSA»
Francisco Umbral
Ed. Campo das Letras


sábado, 4 de outubro de 2008

«O que se passa, Zé?»

Gentileza Google



A minha mulher sonhou que eu tinha morrido.

Ora!


Na madrugada de quinta para sexta, virando-se na cama, sobressaltou-se ao sentir-me tão frio.
Eu estaria na fase do sono paradoxal.
Tocar um corpo que está em perda de temperatura é desaconselhável.
A premonição de viuvez -- Quem aguenta um grito lancinante! -- dilacera.
Sacudiu-me.
«O que se passa, Zé?»


«Não ligues.» Disse Pasternak «Parece que toda a filosofia é um imenso esforço para superar o problema da morte e do destino.»


Eu não estive a morrer.
Mas se estivesse estado à beira da morte não me pareceria mal se me tivesse sido perguntado o que sentira.


Ela aconchegou-se, cingindo-se ao meu corpo, exalando flores de jasmim de Alepo, violetas, flores de romãzeira e narcisos, para que eu soubesse poder repetir «As Mil e Uma Noites.»

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Crítica


Gentileza Google


«Às vezes a gente faz críticas tão desonestas a respeito de uma pessoa que nunca mais consegue acreditar nela.»

*

«Só uma coisa a máquina não é capaz de substituir:
o contribuinte»


In:

«PIF-PAF»
Millôr Fernandes

domingo, 28 de setembro de 2008

Num lugar irreal



«Num lugar irreal,
refém das suas imagens e dos seus reflexos,
é difícil perceber o que se passa à volta»
Diogo Lopes
In Público:

«A 11ª Exposição Internacional de Arquitectura da Bienal de Veneza»


1.
Moramos num bairro de vivendas com um jardim a ladear o piso térreo e um primeiro andar sem varandas.

Desde o volume à disposição do edifício na área de construção, o arquitecto replicou um único desenho e desejou que os ocupantes respeitassem e estabelecessem a diferenciação entre vizinhos através da pintura da casa e do ordenamento do jardim.
Essas regras têm sido cumpridas.

Esta manhã, um empresa de construção instalou na vivenda à frente da nossa uma estrutura de madeira encostada à fachada. Sobre essa estrutura, desde o beiral até meio do pé direito do rés-do-chão, fixaram -- numa inclinação de báscula travada a dez graus aquém de um ângulo recto, como se tratasse de um cavalete invertido -- painéis espelhados.
Agora, sempre que viermos à janela da nossa casa, o que vemos, qual efeito Torre de Pisa, é a nossa vivenda inclinando-se, reverencial, replicada para nós.

2.
A minha mulher não gostou. «Não pode ser. Agora ficávamos reféns da nossa imagem!»

Na esquadra, o espanto do agente de serviço foi enorme. Reticente, aceitou a queixa contra "desconhecidos" enquanto foi opinando que a Junta de Freguesia ou o Urbanismo da Câmara Municipal é que deveriam intervir.
O Piquete de Emergência da Câmara não reconheceu o problema e recusou agir.
A Gestão do Condomínio aceitou avaliar a situação -- cobriria os painéis espelhados, sim, mas só depois do fim-de-semana -- mas não foi capaz ou não quis explicar como é que alguém entra no condomínio para executar uma instalação daquelas.

3.
A qualidade das imagens captadas pela câmara de vigilância era muito má.
Ter-se-á realizado uma festa na casa.
Os convidados aproximaram-se apeados e mascarados:
Dois palhaços, ela com bola-de-nariz azul celeste e ele com bola vermelha; uma alforreca esquálida, cheia de verdes e transparências, rodeada de fitas de tule brancas, quais tentáculos a rebentar de veneno irritante, dependuradas das extremidades da copa de um chapéu-de-chuva, um esplendor de nuances; um cavalo-marinho lento e solipsista; duas meias cascas de mexilhão que à entrada se fecharam para simular a unicidade bivalva; uma sapateira na sua perene indecisão de avanço/recuo, esquerda/direita, demorando uma eternidade à entrada da festa...

Uma falha de corrente impediu a continuação da gravação.

«(...)
Os habitantes de Valdrada sabem que todos os seus actos são ao mesmo tempo esse acto e a sua imagem especular, a que pertence a especial dignidade das imagens, e esta sua consciência proíbe-os de se abandonarem por um só instante ao acaso e ao esquecimento. Mesmo quando os amantes dão voltas aos corpos nus pele contra pele procurando a maneira de se colocarem para ter um do outro maior prazer.
(...)
O espelho ora aumenta o valor às coisas, ora o nega. Nem tudo o que parece valer muito por cima do espelho consegue resistir quando espelhado. As duas cidades gémeas não são iguais, porque nada do que existe ou acontece em Valdrada é simétrico: a cada rosto e a cada gesto respondem do espelho um rosto ou um gesto inverso ponto por ponto. As duas Valdradas vivem uma para a outra, olhando-se continuamente nos olhos, mas não se amam.»
(Pg.55/56)

"As Cidades e os Olhos"
In:
«AS CIDADES INVISÍVEIS»
Italo Calvino
Ed. Teorema

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

«LINGUAGEM»




«A linguagem utiliza a ciência para alcançar a ilusão da Verdade, tal como a linguagem utiliza a arte para alcançar a ilusão da Beleza.»







Fonte:

Texto: «BREVES NOTAS sobre a ciência» Gonçalo M. Tavares Ed. Relógio D' Água
Ilustração: «O HOMEM DE VITRÚVIO» e «VITORIA DE SAMOTRACIA» Gentileza Google

sábado, 20 de setembro de 2008

Nunca se deve voltar onde se foi feliz



1.
A nossa casa do Douro, em Cinfães, está á venda.

Argumento de venda: estar construída sobre dois socalcos; não haver um único obstáculo que se interponha entre a casa, o rio e a margem oposta; finalmente, ser de fácil acesso.

No primeiro socalco, num amplo espaço arrelvado com piscina, abre-se o logradouro com capacidade para dois carros e uma falsa edificação pergolada para a piscina e para vale. Uma área assim, tão extensamente envidraçada, garante repouso, protecção dos ventos e a paisagem única do vale e das encostas vinhateiras.
No socalco mais abaixo, abre-se a casa com a sua ordenação tradicional onde prepondera uma ampla sala com lareira e uma extensa varanda sob a pérgola.

2.
Já não me lembro se foi em Lamego ou em Resende, não interessa, que passámos por uma take away e comprámos comida para o nosso jantareco.
Estávamos realmente cansados.
A viagem fora demorada. Apanhámos imenso trânsito.
Um duche bem quente não amolece.
Não nos tendo excedido no vinho, só o cansaço justificaria a lassidão física.
Acendi muitas velas amarelas e laranja, a minha paleta favorita, e fui elogiada. O Luis achou o ambiente admirável.
Conversámos imenso.
Para não atrasar o amanhecer, calámo-nos.
Não fomos lá para baixo, para o quarto. Trouxe um edredão, abrimos o sofá e, cingidos, tentámos adormecer.
Penámos por encontrar conforto e apaziguamento, tamanha era a euforia!

3.
De manhã, levantei-me com fome. Fui á cozinha e preparei dois batidos. Sei lá quantos crackers comemos -- Dois, três, talvez quatro. Tantos! -- Adormecemos novamente.
É claro que já não foi um sono profundo e solto. Lembro-me, sim, de sentir-me afagada pelo Luís e experimentar uma volúpia indescritível. Fizemos amor, naturalmente. Mas eu não me lembrei que tinha temporizado a abertura do cortinado para aquela hora. Estaria estabelecida por defeito? O que é facto é que ela ocorreu quando exultávamos de prazer.
O Luís ainda fez um brevíssimo staccato.
Controlou-se.
Salvámo-nos!
Cinco minutos depois, ainda não sabia o que dizer-lhe.
Paciente, aguardou mais uns instantes.
Depois disse-me «Até agora, malgré cela, tudo tem estado perfeito.» Beijei-o. «Um amigo meu tem um barco excelente para fins-de-semana. Gostarias de experimentar, Ana? -- Claro!» Fez uma pausa «Já nos imaginaste no alto mar, a dar azo aos nossos caprichos, a beijarmo-nos, a fazer amor... -- Seria óptimo, Luís!» Ele «O que farias tu, Ana, se de repente, o canto suave, melodioso, inebriante e irresistível de uma sereia, fazendo-se ouvir, lá das profundezas, me enlouquecesse ao ponto de me fazer atirar borda fora, ao seu encontro? -- Nada. Desligava a programação da abertura do cortinado e atirava ao mar o Ipod que atarraxaste ao ouvido e que já me está a enervar!»

terça-feira, 16 de setembro de 2008

«Segredo»


«Afastado do olhar comum, escondido debaixo da terra como a raiz de qualquer planta, não te esqueças de guardar algo; que apenas depois da tua morte o mundo perceba a sua dimensão»

In:
«BREVES NOTAS sobre o medo»
Gonçalo M. Tavares
Ed. Relógio D'Água

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

SILKY (Conclusão)


5.
Chovia copiosamente quando amanheceu.
O Paulo levantou-se. Correu os cortinados. Uma ténue luminosidade pairou.
Na praça, de costas para a sua janela, uma jovem de anorac escarlate, segurando firmemente pela trela um cão de médio porte, recebia esclarecimentos de um homem.

O cão encharcava.
Era o
Silky. Não havia dúvida. E ela?
Enquanto se vestia à pressa, a jovem era recebida pela D. Eunice e o Sérgio entrava na pastelaria do Lencastre.
O Paulo correu escada abaixo, a galgar degraus, em vão.

O cão da jovem ensaiou uma corridinha para a porta. Não chegou a ladrar.

Quando abriu a porta da rua para gritar
«Isabel, vem para dentro. Um aguaceiro destes faz mal!» a praça já estava vazia.

Profundamente desiludido, regressou ao apartamento. Durante imenso tempo, não saiu da janela. Não circulou vivalma na praça. O desespero aumentava. Telefonou ao Lencastre:
«Sim! Olá Paulo... Nem aqui nem na praça vi mulher com cão... Queres falar com o Sérgio? Se a vir, ligar-te-ei. Fica descansado.» Antes de desligar «Vem cá abaixo tomar um café, aparece!»
A chuva abrandou. Sentiu algum alento. As pessoas começaram a cruzar a praça.
Ao contrário do habitual, D. Eunice não foi à pastelaria do Lencastre. Saiu e acompanhou a jovem até à estação de comboios.
Caminhavam pelo passeio quando se lhes dirigiu um jovem a promover máquinas fotográficas.
«As senhoras podem tirar uma dúzia de fotografias. Trata-se de um modelo descartável. A revelação é grátis.» Entregou uma amostra a cada uma. «Peço apenas que coloquem a vossa prenda com a nossa marca virada para mim enquanto fotografo as felizes contempladas. "Cheese!" Já está. Para minha segurança, deixem-me repetir. "Chees...!" Obrigado!» Continuaram pelo passeio, sem atravessarem a praça, fora do alcance visual de Paulo.

D. Eunice regressou a casa por volta da uma da tarde. Vinha eufórica. Acabara de alugar os dois apartamentos do 1º andar à jovem professora.
Já nem chovia.

Estranhamente, havia água no chão. Subiu a primeiro andar e os seus receios confirmaram-se. Abundante, a água vinha do sótão, de casa do Paulo. Correu à pastelaria «Lencastre, vem depressa. Ajuda-me. Tenho uma inundação no prédio... Ou pior!»
Tocaram à campainha, chamaram, bateram fortemente na porta, tentaram arrombá-la. Nada. Ninguém respondia. A água corria continuamente.
A D. Eunice foi a casa buscar a chave-mestra e os piores receios confirmaram-se: o Paulo jazia na banheira. Cortara os pulsos. No chão, junto ao x-acto encontrava-se, amarfanhada, uma fotografia de polaroid da jovem de anorac escarlate, segurando firmemente pela trela um cão de médio porte, a receber esclarecimentos de um homem. Na parede da sala, ao lado da foto da Isabel, várias outras, mal se distinguindo daquela que fora abandonada no chão da casa de banho. Tratar-se-ia de gémeas? -- Nem pensar!


6.
Resgatado o cadáver, a polícia fez as recolhas preliminares e selou apartamento. A autópsia confirmaria o suicídio.


7.

Reveladas as duas fotografias tiradas na praça, a D. Eunice só aparecia na primeira. Na segunda, muito nítida, a jovem tinha um lenço de seda escarlate, displicentemente colocado à volta do pescoço e envergava um anorac azul. Vestia calças de ganga e calçava ténis de marca.

O louro do cabelo era menos acentuado e o corte idêntico ao da Isabel.


A senhora de idade avançada não se lembrava do lenço de seda. Não podia lembrar-se. Vira-a de costas. Decidida «Foi essa menina que vi, sim. Agora me lembro desse anorac azul. Trazia-o atado a cintura. Não tenho qualquer dúvida. Era ela. Caminhava como se estivesse a passear. A cor do cabelo... Acho que era escura. Assim alourada, não!»
O homem que lhe deu informações na praça, sob o aguaceiro «Do lenço de seda, não me lembro. O zip estava corrido até ao pescoço. O cabelo era escuro e curto. O anorac era escarlate. Mas... Deixe ver melhor... Ah! A gola é que era azul, por dentro.»
O Artur estarreceu quando lhe foi mostrada a fotografia.
«Foi essa mulher que desencadeou esta tragédia... É ela. Reconheço-a. Vinha da falésia com o anorac atado à cintura, sim. Este corte de cabelo é o mesmo. Ela pintou o cabelo, não foi? O que é que conseguiram saber do passado dela?»
Recolhidos os testemunhos, o polícia foi lacónico
«A esta hora, essa senhora estará a ser presa.»


8.

A Isabel, o Paulo e a Rita ensinaram na mesma escola, no regime de triénios.
Não é possível saber se a Isabel chegou a ter conhecimento do envolvimento da Rita e do Paulo ou, fingindo desconhecer, para não escandalizar, uma vez que estavam no terceiro ano de ensino naquela escola, a Rita no segundo, aguardou que a mudança resolvesse os problemas do triângulo.
A Rita soube que eles partiram e reagiu. Fez ameaças. Chantageou o Paulo. Escreveu cartas anónimas à Isabel.


9.

Quando soube que eles se instalaram na casa da D. Eunice e davam aulas na Vila, contratou um detective particular para vigiar a rotina do casal. Pagou ma fortuna e recebeu um relatório cheio de imprecisões, de invenções.
Ao alugar os dois apartamentos do 1º andar excluía a possibilidade de alguém se interpor entre ela e o Paulo, no sótão. As vagas abertas naquela escola eram preenchidas com dificuldade. A apresentação da sua candidatura teria muitas chances de ser bem sucedida. Havia, portanto, que fazer aproximações sucessivas, conhecer as amizades do casal, as suas rotinas. Ser discreta. Tê-lo-á sido meticulosamente.
A Isabel adorava passar uma tarde à beira mar, ou numa falésia, a ler e a ouvir música. A Rita sabia disso.
O que foi feito era o que havia para fazer.
Aproximar-se da Isabel. O Silky já a conhecia, reagiria afavelmente. Um simples empurrão, primeiro da Isabel, a seguir do cão, seria complicado desvendar. Deixaria o Paulo devastado, é certo, mas o tempo e a casual proximidade resolveriam o desamparo que viesse a experimentar. Consumadas as quedas, retirar-se-ia.
Para empurrar a Isabel terá arranjado um pretexto para prender, pela trela, o Silky, ao guarda-lamas do carro. Ela teria de abandonar a falésia antes do cão, reagindo, chegar a alguém. Ela saiu.
O cão conseguiu libertar-se e pedir socorro; a maré não chegou a subir o suficiente para ocultar o cadáver; o grau de prontidão do INEM e dos bombeiros ao pedido de socorro do Paulo e do Sérgio foi exemplar.
Mais tarde, para poder reaproximar-se e evitar ser reconhecida, havia que fazer desaparecer o animal. O que foi fácil. Porém, regressar com um cão simulando um duplo da Isabel e do Silky, ousou em demasia. Ou acharia que devia proteger-se? -- Não se sabe.
Ao instalar-se no sótão, conhecendo-a, o Paulo nunca terá tido dúvidas quanto ao seu regresso. Ela voltou, estoirando com o programa de recuperação psicológica dele.
A Rita terá encontrado uma maneira de o pressionar.
Uma quantidade enorme de objectos e indícios bem como os computadores pessoais de ambos estão sob reserva para averiguações.
Sabe-se que os sintomas de loucura da Rita já transpuseram a prisão onde preventivamente foi instalada. Errou na avaliação de resistência emocional do Paulo. O suicídio dele tê-la-á surpreendido.
Nestas condições resta-lhe o quê, suicidar-se também, lamentar-se por ter lutado por um homem que não aguentou a pressão da separação depois de lhe ter prometido sabe-se lá quê, alhear-se e cumprir a pena, como uma zombi, ou ser inexoravelmente um caso psiquiátrico?
Sabe-se que numa das sessões de interrogatório entrou em histeria quando a polícia fez entrar o Silky -- tê-lo-á suposto morto? -- arrastando uma sobra do guarda-lama pela trela e um lenço de seda ao pescoço, igual ao que ela usou na falésia.

sábado, 6 de setembro de 2008

SILKY


«Outside of a dog,
a book is man's best friend.
Inside of a dog,
It's too dark to read!»
Groucho Marx


1.
A Isabel morreu.

É difícil imaginar como é que um adulto cai falésia abaixo tal como, se a tese do homicídio for comprovada, um adulto acompanhado de um cão não resiste a uma investida, não evita a morte.
Como o resultado da autópsia é desconhecido, os rumores insistem na profusão de escoriações em extensão e profundidade de tal ordem que não teria sido possível comprovar as causas da tragédia: queda em consequência de consumo de droga ou álcool; brincadeira com cão seguida de desequilíbrio; suicídio; homicídio com utilização de arma branca ou de fogo.

Naquela tarde de Maio a temperatura rondaria os 25º C. O cadáver foi resgatado -- havia uma hora que a maré começara a encher -- com um anorac escarlate vestido. O vento agreste é uma justificação aceitável?

2.
O Sérgio, o grande entusiasta das pescarias, estranhou ver o Paulo aproximar-se de mãos nos bolsos. «A cana, Paulo? -- Afinal esta tarde não podemos demorar, Sérgio» A Isabel «A pescaria fica para outro dia.» «Alteração de planos!» Acrescentou o Paulo. Para o lado oposto onde os deixava, a Isabel voltou para o carro com o Silky «Não te esqueças que estou à tua espera, Paulo. -- Não demorarei.»
Onde a falésia menos acentuava o Sérgio e o Paulo desceram uns quinze metros. A partir daí o Sérgio começou a iscar e por ali estiveram a beberricar cerveja e a conversar.
Subitamente, o Silky apareceu lá no alto, ofegante, agitadíssimo, a ladrar intensamente. Correram para carro. A Isabel jazia no fundo da falésia. Morta. O corpo desfeito. Desesperado, o Paulo quase repetia a tragédia na ânsia de socorrer a mulher. Chamaram socorros.

O INEM recolheu o cadáver; o Paulo foi levado ao hospital, em estado de choque.
O Silky passou pelo veterinário para tratar as feridas no pescoço, tamanho foi o esforço para se libertar do guarda-lamas do carro.
A polícia colocou o carro e o cão em sequestro para averiguações e iniciou a recolha de indícios e testemunhos.

3.
O Sérgio estava com o Paulo. A ida à pesca havia sido combinada há dias. O Lencastre e o Artur estiveram presentes. Comprovariam.
Uma senhora de idade avançada lembrava-se de, vinda da falésia, ver passar uma jovem de anorac atado à cintura. Perguntada a cor, hesitou. «Seria escarlate...» Ao saber que a Isabel também vestia escarlate, ficou tão confundida que o seu testemunho enfraqueceu irremediavelmente.
O Artur lembra-se vagamente de ter visto uma jovem de cabelo escuro, curto, com um anorac azul «A cor da gola? -- Não sei precisar... É curioso... Pareceu-me escarlate... Agora me lembro que não era...» A jovem não vestira anorac. Atara-o simplesmente à cintura. «Disso tenho a certeza!» Mas não lhe deu qualquer importância. Esteve com o Lencastre na pastelaria. Poucos minutos passavam das cinco. Estava-se no intervalo da bola.
O Lencastre confirmou ter assistido à conversa sobre a pescaria. Não viu, nem entrou no estabelecimento qualquer jovem ou outro estranho. Soube muito mais tarde da tragédia quando passaram o INEM e os bombeiros.
Depois de um longo esforço para controlar o choro, a tragédia daquela família, a D. Eunice garantiu tratar-se de um casal exemplar, de comportamento irrepreensível, sociável. «Ainda bem que atrasaram a vinda de um filho... Uma desgraça destas... Quem cuidaria dele!»

4.
Quinze dias depois, o Silky desapareceu.
O Paulo ficou muito inquieto. Participou à polícia.
O Artur reuniu o Sérgio e o Lencastre e os três, temendo o pior, cada vez mais inclinados para o homicídio, resolveram tentar falar com o inspector que conduzia a investigação. Apesar de torcer o nariz à iniciativa de protecção informal acedeu, desde que D. Eunice aceitasse ceder-lhes apartamento do R/c. Diariamente, a horas incertas, alguém da polícia "bateria o terreno".
Quando o Lencastre se preparava para fazer o pedido à D. Eunice, esta chamou-o para lhe dizer «Ouve lá, Lencastre: é preciso ferver o chá desta maneira... Concentra-te no que estás a fazer. O teu serviço... Até parece... Bem, sabes uma coisa: o Paulo pediu-me para mudar para o sótão. Só e sem o Silky, disse-me não precisar de tanto espaço. Acrescentou, satisfazer assim um desejo de miúdo -- Nesse caso, fingiremos ir lá visitá-lo para o ajudar a mudar -- Vês, és amigo! -- D. Eunice, eu também queria fazer-lhe um pedido -- Diz!... Trouxeste o adoçante?... Deixa lá! -- Precisamos do seu R/c Dto para precaver algum acidente. -- Achas que o Paulo corre perigo? -- Achamos que será melhor para si e para ele tomarmos esta precaução. Nem ele, nem ninguém poderá saber, D. Eunice. Podemos contar consigo? -- Podem! Também eu acho muito estranho o desaparecimento do Silky. -- Se alguém com uma conversa estranha pretender alugar um apartamento seu, avise a polícia e diga-nos também, valeu?»

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Conclusão na próxima edição.