terça-feira, 1 de abril de 2008

SETE VIDAS

(Gentileza Google)
Prólogo:
Vivo no último andar de um prédio RECRIA de oito condóminos. Os quatros esquerdos estão ocupados; o R/c dos direitos está livre. O cônjuge morreu e a viúva partiu.
Tive a possibilidade de escolher e não hesitei. Por cima abre-se uma clarabóia como nunca vi. Até nos dias mais soturnos de Inverno irradia uma luz única.
Instalei-me há seis meses. Mal conheço os vizinhos. Sei que à minha direita vive um casal com uma criança. Há cordialidade sempre que nos cruzamos. Apenas isso.
«Daqui em diante, vai, e pensa naquilo que
a boca não pode dizer nem o ouvido escutar»
Sefer Yetsirah, IV,16
1ª Vida:
O Lencastre -- R/c Esq. -- esteve na rua a passear o Faísca e a conversar com o ardina. Discutiram futebol.
Os condóminos do 1º andar estão fora. Pelam-se por pontes. A esta hora já estarão a acampar lá para Vila Nova, Porto Covo, onde for.
A D. Ester -- 2º Dto -- com uma surdez a galopar e um vício incorrigível por telenovelas tem o som da Tv no limite.
O Raul -- 2º Esq. -- é um pouco mais velho do que eu. Celibatário. Não se sente bem. Incompreensivelmente, em vez de chamar 112, abre a porta de casa e já não será capaz de pedir socorro. Estatela-se. O copo de água estilhaça-se e o gato, embora saiba que o líquido derramado não é leite, fareja para confirmar que é água. Quase imperceptível, um finíssimo fio de sangue desce do pescoço, de trás da orelha, até ao chão.
2ª Vida:
No regresso a casa, o Faísca vem sempre à trela solta.
Mal entrou no prédio sentiu o corpo do Raul. À desfilada, galgou as escadas até ao 2ºandar e surpreendeu o gato a lamber uma das patas. Este fugiu escada acima perseguido pelo Faísca.
Tamanho era o reboliço, abri a porta. O gato esgueirou-se. Ladrando, o Faísca desceu numa agitação surpreendente. «Era só o que me faltava em casa. Um gato! -- Escondeu-se aonde?»
Minutos mais tarde, à minha porta, a ofegar, o Lencastre afligia «Venha depressa lá abaixo. O Raul precisa de ajuda. Encotrei-o estendido à porta de casa.»
No hospital, o médico quis saber o meu grau de parentesco. Peremptório, acrescentou «O estado de saúde é grave. Esta noite não terá alta. Amanhã de manhã reavaliá-lo-emos. Apareça então.»
3ª Vida:
Telefonei à Luisa «Um gato aí em casa, Paulo?» Escondera-se. Como chamá-lo se nem o nome dele sabia. «Enche uma taça de leite. Ele há-de ir lá. Se ouvires ronronar é bom sinal. Ele há-de defecar. Sentirás o cheiro...» Sarcástica «Se fores arranhado... chama o 112. Irei ao hospital. Ai, nem penses!»
4ª Vida:
À minha porta «O Raul está no SO, D. Ester. Não recebe visitas. Quando ele voltar, a Senhora poderá ir lá a casa...» Ela aceitou a metirazinha e voltou para casa.
Relutante, casal vizinho quis saber do Raul e condoeu-se.
A porcaria do gato não deu sinal de vida.
E no entanto, uma medalha de identificação para animais domésticos jazia junto ao rodapé da minha porta.
«Em cada gato há outro gato
um pouco menos exacto
e um pouco menos opaco.
...
que anda por ali
algo que não cabe
dentro nem fora de si.»
«O segundo gato»
Manuel António Pina
5ª Vida:
Ninguém havia reparado, mas da clarabóia projectava-se a sombra de uma silhueta felina. imobilizada, paciente, altiva, independente.
«...Mas amanhã morro
e hoje gostaria de tirar este peso da minha alma.»
«O Gato Negro»
Edgar Allen Poe
6ª Vida:
A Luisa lamentou a morte do Raul. Insistiu muito na explicação da origem da septicemia. A medalha encontrada mais tarde pelo Paulo também a deixou muito perplexa. Sabia que tinha sido aprovada legislação para instalar chips nos animais domésticos, embora o incumprimento fosse grande.
Sem Paulo saber, foi a hospital. O médico que assistiu o Raul reconheceu ter reparado no arranhão mais tarde. «Sim, no pescoço. Muito superficial!» A causa do corte tanto podia ter sido provocada por uma lasca do copo partido como pelas unhas do gato. O relatório da autópsia ainda não era oficial e público. «Houve uma paragem cardíaca. Essa causa é segura, minha Senhora.»
Do prédio, a Luisa ficou a saber que havia uma cave, sim senhor. Estava a ser utilizada para armazém de uma pastelaria contígua ao edifício, com entrada completamente autónoma.
7ª Vida:
Sentada na poltrona a ouvir música, Luisa continuava a achar muito estranho o desaparecimento do gato, o desinteresse do Paulo pela medalha, o alheamento de todos.
O único familiar do Raul era uma senhora de idade, esclerosada, residente num remoto lar no Norte, distante de tudo e de todos. Por essa razão também, os bens do Raul foram empacotados e guardados num armazém até uma decisão sobre que deles fazer.
Foi a pensar nisto que acabou por adormecer.
§
De repente, o gato saltou para cima da mesinha de apoio da poltrona.
Imobilizou-se.
A ronronar itensamente fixou-a com o seu único olho.
A Luisa acordou. Gritou, gritou, gritou. Alcançou o corta-papéis e, enquanto teve força, espetou-o repetidamente. Afligia ouvir o gato miar estridentemente! A Luisa não queria saber se as suas sete vidas morreriam uma-a-uma ou em simultâneo. Tratando-se de uma réplica do Gato Negro de Poe, teria de morrer. Ela é que jamais aceitaria ser emparedada.
§
Sobressaltado, o Paulo teve enorme dificuldade em acalmá-la, fazê-la parar. A almofada estava desfeita. Quando acordou a exaustão era óbvia «Oh, meu deus. Que pesadelo!»
A Luisa concluiu o relato «O prédio transformou-se numa enorme caixa sem saídas. Da clarabóia apenas a luz entrecortada pelo frenesim de silhuetas. Sinistras! Horríveis!! E eu, inexoravelmente só. À mercê daquele monstro a ronronar!!!»

4 comentários:

Nilson Barcelli disse...

Este teu conto é fabuloso.
Lê-se num fôlego.
Acho que tens fôlego para mais. O conto será curto para ti e o romance estará mais à tua medida.
Parabéns.

Abraço.

Teresa Durães disse...

gostei imenso do que li de uma rajada só.

coitado do gato que deveria ter saudades do seu dia-a-dia. Como o Raul, conheço vários casos assim mas com mais família. Lamentável mas sem retorno

Alberto Oliveira disse...

... os gatos dão belos contos. Como este. Certeiro, felino. Se adivinhasse o tema, teria trazido carapaus.

abraço.

segurademim disse...

... não suporto gatos