sábado, 31 de maio de 2008

«Explicação do amor e do orvalho»


«Uma fogueira no meio da noite cercada
Por um homem com os olhos rasos de água»

In:

«POESIA»
Daniel Faria
Edições QUASI

terça-feira, 27 de maio de 2008

ANA K

O Vasco ligou-me «Ana, sabes qual é a única ilha portuguesa onde se chega de comboio?» Não estava à espera do telefonema e nem fazia ideia. «Não! -- Qual é?» Ele, desafiando «Que tal irmos até lá este fim de semana?» -- «Onde fica a ilha?» Confiante «Praia do Barril.»

A Praia do Barril situa-se na Ilha de Tavira. O areal é muito limpo e a praia relativamente larga.
Para lá chegar há que transpor o Canal de Tavira através da ponte pedonal flutuante, na orla das Pedras d'El Rei e depois, percorrer o passadiço até às antigas instalações da pesca do atum -- adaptadas ao comércio, restauração e esplanadas -- ou embarcar nas carruagens abertas puxadas por uma locomotiva a diesel disfarçada de máquina a vapor.




O casal que está sentado nestas cadeiras é um dos mais famosos da Europa.
Ela veste roupa branca, com debruados azul-marinho muito discretos, levíssima: camisola de algodão sem mangas e com gola de marinheiro com a habitual geometria rectangular onde sobressai uma faixa dourada, mais estreita, entre duas azul-carregado. O calção até ao joelho tem também uma faixa dourada mínima a fingir uma bainha com virola.
Ele veste camisola de algodão de manga curta, sem gola, abotoada desde o esterno. Calção, também até aos joelhos, do mesmo padrão da camisola. Adereço completo às riscas azuis.
Quando jogaram "ao ringue" não deixei de reparar no cinto acetinado dela a acentuar a elegância, a harmonia e proporção do corpo. O dele é atlético, altivo, de uma compleição trabalhada. Um corpo talhado para uma patente militar.
Agora repousam.
Apesar da suavidade da brisa, por serem mais largas as abas, mais insistentemente a senhora corrige o ajuste do chapéu na cabeça. Ele baixou ligeiramente a pala para os olhos parecendo acalentar um certo letargo.

O Vasco não acredita «Pode lá ser, Ana!» Ninguém me tira essa da cabeça «São eles: a Anna Karenina e o Conde Vronski!» Impaciente «Não digas uma coisa dessas, Ana.» -- «Digo pois! Por acaso reparaste que falam russo?» -- «São exibicionistas, Ana!» -- «Não digas isso. São aristocratas. Genuínos!» -- «Já sei, rasparam-se do livro sem Tolstoi saber e vieram para Portugal. Nem para Nice, nem para Barcelona, vieram para a Praia do Barril. Logo terão um encontro com a Diáspora!» -- «Estás a ser parvo!» -- «Ok. São aristocratas! Se isso te excita tanto porque não lhes falaste?» -- «Quem te disse que não falei?» -- «Ai, sim! Falaram do quê? Do tempo, da vida... Diz-me, ela ainda se sente vazia? Falou-te do cansaço que é deixar-se esmagar pelo comboio de cada vez que um exemplar do livro é vendido? Também acho demais! E aquela bitola dos caminhos de ferro russos...» -- «Estás impossível, Vasco!» -- «Admitamos que são eles. Vieram para se reconciliar. Disseste-lhe que também a Emma Bovary se sentiu vazia e acabou ingerindo veneno? Isto é um inqualificável absurdo. Se eles falharem a reconciliação ela fará o quê, atirar-se para a linha do comboio daqui da ilha ou esperar pelo TGV? Aristocratazinha pueril...»
Abdiquei de replicar. Fui-me embora... Virei-me na cama.




Então, quando vínhamos da praia, a conversar, ouviu-se o silvar bucólico do comboio. Sobressaltei-me. A Anna vinha soturno. Sombria. Menos faladora do que no primeiro encontro.
Meio metro antes da máquina da composição ficar ao nosso lado, dei uma passada para a minha direita. Com a Anna à minha esquerda eu constituiria um obstáculo entre ela e a locomotiva. Havia que frustrar nova tentativa de suicídio. É tão desagradável. E letal! Além do mais, ela é tão bonita, tão bela... De repente escorreguei e fui apanhada pelo comboio. O Vasco e o Vronski vinham atrás. Falavam de bola. O Conde estava loquaz. Já dizia mais «DA» (Sim!) do que «NIET» (Não!). Mas não percebia porque é que um russo, seu compatriota, resolvera comprar o Chelsea. «Business!!!» Esclarecia o Vasco, com indisfarçável excitação, piscando o olho ao mesmo tempo. Quando senti a máquina esmagar-me as pernas dei um grito lancinante. Ainda ouvi, quase em uníssono «ANA!!!» «AHHA!!!» Eu alucinava antes de morrer. A Anna Karenina desmaiou e as pessoas que quiseram prestar os primeiros socorros ficaram divididas. O maquinista gritava «Não tive maneira de travar. Que desgraça!»

Alguém colocou um espelho à minha frente. Não perto da boca ou do nariz para medir o "Rigor Mortis". Não! Foi o Vasco, a acariciar-me o pescoço, a segredar-me que eu era muito mais bonita que a Anna, que com ou sem o wonderbra punha a Eva Herzigova, ou quem viesse, a um canto. E que deixasse a Anna Karenina em paz. Acordei, é claro. Mal refeita do pesadelo. Espreguicei-me lânguidamente. Já não sentia nada nas pernas. «Tens dúvidas?» Eu deleitada. Ele continuou. «Uma vez li que um espelho serve para ver objectos no espaço e sentimentos no corpo. Revê-te!» Beijámos-nos. Beijám... beij...

Mais tarde, o Vasco explicou-me que aquele «AHHA» do Vronski não era uma exclamação para a derradeira reprise do suicídio de Anna. Mas sim, a maneira como os russos escrevem Anna.

Pergunto: os afectos previnem as cãibras?

sexta-feira, 23 de maio de 2008

«MÃO»



«Pôr a mão a escrever e ir dar uma volta,
ao frio
com a musa disponível...»

In:

«POESIAS COMPLETAS»

Alexandre O'Neill

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Lisboa, Rua do Alecrim

Olha-se para o mapa da cidade e a zona ribeirinha de Lisboa desenha-se em polígono de quatro faces: Parque das Nações até ao Poço do Bispo; daqui até Sta Apolónia; a seguir, até Belém; finalmente, até Algés.


Sentada na Brasileira a tomar o pequeno-almoço, mecânicamente, levantei pires com a madalena e coloquei-o em cima do mapa da cidade. Comi o bolo, bebi o café e dois goles de água. Posei o copo para reparar que o pires não preenchia o perfil da cidade exibido no mapa. Afinal que importância tinha? -- Nenhuma! -- Ao afastar o pires do mapa notei que, colocado naquela posição, o seu arco de circunferência exibia, num mesmo plano, o Chiado e o Jardim Botânico da Ajuda.


No Chiado, sozinha, pelo projecto de filmar e fotografar Lisboa de uma cintura intermédia da sua orografia. Prosaicamente, queria formar uma ideia de Lisboa, da sua "ilharga" para baixo. O Filipe deveria estar a acompanhar-me. Tínhamos combinado que ele filmaria enquanto eu fotografasse o trabalho. No Chiado faríamos o primeiro ensaio. O ponto de captação de imagens estava escolhido: a esquina da Igreja do Loreto confinante com a Rua da Misericórdia, Largo Camões e final da Rua do Alecrim. Exactamente aí. A lente apontaria ao Tejo, à outra margem, onde alcançasse, para captar imagens que correspondessem às possibilidades humanas, ao quotidiano dos lisboetas e da sua relação com o Tejo. Escalonando o zoom, faríamos registos de 4 a 5 aproximações para ponto de partida de análise de planos. «Fica descansada, Leonor. Não irei "borregar". Quem primeiro chegar, espera!»


Coloquei o tripé na esquina do Loreto e ensaiei vários disparos. Revi as fotografias. Ajustei o equipamento e repeti o ensaio. O resultado foi diferente e já me satisfez um pouco. Novo acerto e, então sim, encontrara o ajuste. Nas primeiras séries de fotografias respeitei a escala do zoom nas quatro divisões planeadas. A seguir, procurei aproximações aleatórias. Era muito cedo. Amanhecia devagar e as tonalidades progrediam suavemente. Os Elementos concediam-me a oportunidade de fixá-los. Excitavam-me benignamente. Deslumbrada, fotografei tenazmente. Calmo e apaziguado, quase indolente, o Tejo deixava-se arrastar na vazante enquanto Almada, vendo apagar-se, em séries sucessivas, os candeeiros de iluminação pública, agitava-se para mais um dia de azáfama.






Passam trinta minutos das dez da manhã. É inacreditável a atitude do Filipe. Não há desculpa aceitável para um atraso de duas horas e meia. É sempre a mesma coisa.


Liguei para o telemóvel do Filipe e deixei tocar longamente. Paguei a conta e pedi ao empregado para deixar na mesa a sinopse do trabalho desta manhã. «Se daqui a bocado ele aparecer, dê-lhe esses papéis -- Há-de vir esbaforido! -- Caso contrário, olhe, deite-os ao lixo!» Gratifiquei-o para me assegurar que seria zeloso. À volta do pulso direito de Fernando Pessoa abandonei um lenço que o Filipe me oferecera pelos anos. O parvo era capaz de pensar tratar-se de um sinal, da paciente espera. Fui ao Turismo no Palácio Foz. Um mapa de Lisboa com escala ajudar-me-ia a escolher os restantes pontos de trabalho. Além do Chiado e do Jardim Botânico, muitos mais haveria para explorar.


Na Praça da Figueira fui ao CiberCafé consultar a Net. Numa fúria desbragada, abri a página da Sapo e cliquei o link "MEO". Uma vez lá, inscrevi nos campos desenhados para eles, o nome, a morada e o telefone do Filipe. Voltei a clicar e, seráficamente -- ao assegurar-me que ele receberia uma chamada do Ricardo Araújo Pereira e dos Gatos Fedorentos a publicitarem o serviço da PT, eu sei lá as vezes que insisti! -- rejubilei. Tamanho massacre...O Filipe merecia outra coisa?! -- Desaparecia, perdia-se de vista... Como o Tejo...

quinta-feira, 15 de maio de 2008

«O MAL DE MONTANO»

«(...)
Há pouco, pensando nas palavras de Montano, lembrei-me de «A Memória de Shakespeare», aquele conto de Jorge Luís Borges que surgiu de um sonho que o escritor argentino teve num quarto de hotel de Michigan, quando viu homem sem rosto que lhe oferecia a memória de Shakespeare; não lhe oferecia nem a fama nem a glória -- que teria sido trivial --, mas sim a memória do escritor, a memória da tarde em que ele escreveu o segundo acto de «Hamlet».
(...)»Pg.7; 3º§

In:

«O MAL DE MONTANO»
Enrique Vila-Matas

Ed. Teorema

segunda-feira, 12 de maio de 2008

«O TRINCA-FORTES»

A Celeste aguardava-me no jardim. Cumprimentámo-nos efusivamente. «Fizeste boa viagem, Carlos?» Eu a acenar «Sim! -- Não havia meio de chegar!»

Conhecemo-nos há trinta anos. Talvez mais. Eu era colega do Rogério. Quando eles casaram aceitei o convite recusando ser padrinho. Mais tarde, transferiram-se para Torres Novas. Tiveram um filho. Reconstruíram a casa dos pais da Celeste em Constância. Vim uma ou outra vez às Festas da Nossa Senhora da Boa Viagem. Um AVC fulminou o Rogério. Não fui ao funeral por ter entrado em urgência hospitalar para tratar uma hérnia. «Há quanto tempo não nos víamos?» Eu emocionado «Uns anitos, Celeste!» Como a minha bagagem se resumia a uma mala-trólei e dois sacos, optámos por ir a casa depois de almoçar no «TRINCA-FORTES». (*)
(*) Foi Luís de Camões. Parece que, após perder o olho direito em Ceuta e regressado a Lisboa, se envolveu em brigas e arruaças, o que deu origem à alcunha.
§

Cheguei a casa às 4. O meu avô já cá devia estar. Como vinha preocupado com a nega a matemática, nem quis saber.A minha mãe ao telefone «Porque é que não ligaste, Bruno?» -- «Estava a lanchar, mãe!» -- «O teu avô?» -- «Estou sozinho!» -- Liguei lá para casa, não respondeu.» -- «Anda por aí!» -- «A escola como correu?» Eu ia relatar a nega «Já volto a ligar. Vê se estudas até ao jantar!» Voltei à cozinha. O toque que ouvi não era o do meu telemóvel. A insistência vinha do quarto dos meus pais. Era a minha mãe. «O teu pai já está em casa?» -- «Não, mãe. O pai esqueceu-se do telemóvel!» -- «O teu avô já chegou?» -- «Ainda não!» -- «Já começo a ficar preocupada... Deixa lá!» Desligou. Havia uma mensagem do meu avô no telemóvel do meu pai «Zé, vou passar uns dias a Constância. Beijos»

§


Quando o meu pai chegou a casa já a minha mãe e a tia Matilde tinham conversado longamente. Não se lembravam de ninguém que vivesse em Constância e fosse amiga do meu avô. Mais grave ainda, anoitecera e ele não voltara a dar sinal de vida. «Aonde andas com a cabeça, homem. O teu pai enviou-te uma mensagem, e tu, nada...» O meu pai a caminho do quarto «Aonde vais? A porcaria do telemóvel está aqui. Conheces alguém em Constância que seja amigo do te pai? A Matilde não conhece...» O meu pai a ler a mensagem, depois a ligar, a irritar-se "O número que marcou, de momento, está indisponível." a dizer palavrões. Eu a pensar «Se agora falasse da nega a matemática imolavam-me.»A tia Matilde veio cá a casa depois do jantar. O meu pai quis que ela o acompanhasse a casa do meu avô. Alguma coisa, um indício, podia ajudá-los. Numa saída tão extemporânea como aquela podia ter deixado para trás um contacto precioso. «Liguei para a BT da GNR não há registo de qualquer acidente que tivesse envolvido um Micra. A Brisa recusou-se a indicar, pelo telefone, a matrícula da passagem pela portagem. O pai tinha Via Verde, Zé? » Não sabia. «Se calhar até foi pela estrada nacional, forreta como o avô é!» Disse eu. «E se estivesses calado -- Chatice!» A minha mãe «Vou ligar para os hospitais.» A minha tia «Também não registaram entradas com o nome dele, Clara.» Voltaram de casa do meu avô muito mais desanimados. Não tinham encontrado nada. «Bom. Ele não é uma criança. Estamos a tentar contactá-lo. A fazer tudo o que está a nosso alcance. Não acham que é cedo para comunicar o desaparecimento à polícia?»
§

Quando ia para o meu quarto ouvi a tia Matilde dizer a meu pai «Tu não me digas que pai arranjou uma namorada?!» O meu pai angustiado «Eu sei lá! A única coisa que sabemos é que foi para Constância e está incomunicável. E eu pensei «Fogo! O meu avô é do caraças! Tem um problema maior do que o meu. Eu ando à brocha com o Teorema de Pitágoras e com a merda da nega a matemática; ele com uma namorada -- Quem me dera pudermos trocar. -- Qual de nós irá "chibar" primeiro!»

António Botelho


Pode um desejo imenso

Arder no peito tanto

Que à branda e à viva alma o fogo intenso

Lhe gaste as nódoas do terreno manto,

E purifique em tanta alteza o espírito

Com olhos imortais,

Que faz que leia mais do que vê escrito.»

Luís Vaz de Camões

Ao jantar a Celeste preparou uma ementa irresistível. Não me cansei de elogiar. Modestamente «Não exageres!» Era verdade. A única coisa que esteve ao meu alcance foi ter ido à loja de vinhos fazer uma escolha adequada. Resultou. «Que te pareceu o vinho, Celeste?» -- «Uma delicia, Carlos! -- Não pesa na cabeça. Um veludo!» «Ainda bem!» Pensei. A conversa evoluiu naturalmente até chegar a comparação do quotidiano de Lisboa e do Ribatejo. Ambos concordámos que é muito diferente estar aqui em Constância e ir a Lisboa sempre que se quiser. A Celeste acrescentou «Não perco um fim-de-semana aqui. Constância enche-se de gente nova que aqui vem para petiscar, palpitar por Camões sem saber que "O TRINCA-FORTES" era ele...» Eu «Alguns, sabe-lo-ãoEla «Poucos, presumo!» Efusiva «...Constância enche-se. Há movimento. Alegria. Emoção. A canoagem movimenta gente como nunca vi. É bom ver a juventude a praticar desporto. Não achas?!» -- «Claro que acho bem. Mesmo não parecendo, são meninos para recitar um soneto às namoradas e derretê-las! -- Não é por acaso que aquele restaurante se chama "PEZINHO NO RIO"» Concordante «Mas tens dúvidas?!» Mudando o tom «Acreditas que eu, em Lisboa, me aborreço deveras? Ao pé de minha casa houve um coreto. Removeram-no. No lugar instalaram um quiosque. Agora nem isso funciona. Vivo numa zona tão soturna que nem os gatos miam ou os cães ladram. Até parece que alento o poema de Cesário Verde...» A Celeste empolgada «Nas nossas ruas, ao anoitecer,/ Há tal soturnidade, há tal melancolia,/ Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia/ Despertam um desejo absurdo de sofrer. (...)//» Eu «Acreditas, Celeste, que até as luzes da praça enfraquecem? -- A praça desaparece. Um desamparo total!» A Celeste a olhar para mim, muito séria «Verdade?» Eu, cabisbaixo «Sim!» Espontânea «Que tal passares mais tempo comigo, aqui em Constância?» Beijei-a.

§

Quando o Bruno ouviu a voz do avô deslumbrou-se. «Olá, '! 'Tás aonde?» Alegre «Em Constância! -- Tudo corre bem. Diz aos teus pais e à tia Matilde que estamos bem.» Eu «Estamos... Estás com quem, '?» Pausa «Estou com a Celeste. Uma amiga, Bruno Eu «Ah, bem! Ok, '!!» Ele, entusiasta «Há aqui um clube de canoagem. Queres vir até cá?» Eu resignando «Tive nega a matemática, '. Ainda não disse aos meus pais.» Peremptório «Promete-lhes que vais estudar para passar. Deixar-te-ão vir. Vou buscar-te ao Entroncamento. Diz-lhes que eu também tenho uma surpresa para eles. Valeu!» Desligou.

sexta-feira, 9 de maio de 2008

A minha casa

(Gentileza Google)

Não desejo recuar à ideia de casa como elemento fundamental da constituição de vida humana (Agradeço esse facto aos meus pais.) no momento em que o ser humano abandona o nomadismo (Impossível recuar tanto!).
Dando como adquiridos os conceitos de território, lugar, paisagem, a casa como propriedade garante o estabelecimento de relações entre indivíduos, entre grupos sociais.

Pratiquei a transumância e cansei-me.
Desfiz-me das várias casas e para evitar a tirania do «subprime» apenas conservo esta (Modestamente, considero-a exemplo de uma boa aplicação do Programa RECRIA; imune a qualquer POLIS).

A minha casa!

É acolhedora.
Nela, sinto-me feliz!

Para si,Vitrúvio(*), um abraço!
(*) (Sec I aC Princípios de arquitectura: utilidade, beleza e solidez)

terça-feira, 6 de maio de 2008

A Casa...

(António Botelho)

«Guarda tu agora o que eu, subitamente, perdi

talvez para sempre -- a casa e o cheiro dos livros,

a suave respiração do tempo, palavras, a verdade,

camas desfeitas algures pela manhã,

o abrigo de um corpo agitado no seu sono. Guarda-o

(...)»

Fonte:

«A CASA E O CHEIRO DOS LIVROS»

Maria do Rosário Pedreira

Ed. GÓTICA


quinta-feira, 1 de maio de 2008

Vê o que ouso


Ás nove da manhã, depois de lhe abrir a porta, após toques repetidos, a Hortense insistiu em obter o meu perdão «Eu sei que hoje é Sábado. Veja. Aqui está escrito "ENTREGA URGENTE" Eu não podia deixar de cá vir, menina.» Eu a apertar o nó do cinto do roupão. Sem ouvir. A querer saber o remetente. Intrigada. A Hortense a olhar para mim. A perceber «Foi uma daquelas empresas de entregas... Veja aqui... Teresa... É para si!» Tratava-se de um volume de dimensões apreciáveis, mas leve. «Muito obrigado, Hortense.» A porteira lá foi à sua vida.


Uma hora mais tarde, tocaram novamente à porta. Um homem de compleição normal, envergando calças de ganga, blusão displicentemente desabotoado, capacete de cabedal cingido à cabeça e óculos de protecção subidos na testa, segurando na esquerda enluvada, a luva da mão direita, aguardando a minha resposta.
Era o Sérgio.
Agora percebia o conteúdo da encomenda. O capacete, os óculos, um par de luvas com um cinto minúsculo para apertar o pulso e o lenço de seda branco. Apetrechos para viajar ao relento.
Visivelmente impaciente, repetiu toque, encostou o ouvido ao intercomunicador a avaliar. Daqui de cima não chegava mais ténue indício. Consultou relógio. Hesitou. Desceu o lance de escadas da entrada do prédio. Saiu do espectro da câmara.
Eu sentia-me realmente perplexa. É certo que tinha aceite o convite surpresa do Sérgio. Sem saber no que me metia. Achei que ambos íamos esquecê-lo. Agora restava-me fingir que não estava em casa -- Uma indecência! -- ou, aceitar, se ele insistisse. Ele insistiu. Mandou mensagem "Daqui a cinco minutos estarei à porta do prédio" Cumpriu. Ainda pelo intercomunicador «Não me digas que ainda estavas deitada, Teresa. Está um dia esplêndido, miúda. O sol brilha. Vamos passear!»
Quando cheguei lá abaixo, confirmaram-se os meus piores receios. O Sérgio aguardava-me radiante «Olá Teresa!» Íamos viajar de mota «Eu não sabia que tinhas um sidecar, Sérgio.» Desconcertante «É verdade. Não tenho. Aluguei este. Para viajar sozinho bastar-me-ia a mota!» Eu ia participar numa loucura. «Nem sei se deva aceitar... Decidido «Íamos para Sintra de segway, Teresa?» Meio irritada «É seguro ir assim?» Ele olhou para mim. «Aproxima-te, Teresa.» Refez o nó. Pediu-me que resguardasse as extremidades do lenço de seda branco debaixo do blusão. «Agora senta-te no sidecar. Põe o capacete. Ajusta os óculos. Calça as luvas, enquanto eu te aperto o cinto de segurança. Nunca largues as barras de apoio. Estas aqui. Confia em mim.» Beijou-me a testa. «Num dia destes, Sintra é soberba. Já estamos atrasados!» Deu à guise e marche da mota. O ruído do motor era suave e sincopado. Apontou para o cabaz de verga atrás dele «O nosso farnel!» Seguimos.


A viagem até ao Portão dos Lagos correu sem sobressaltos. A trepidação pareceu-me excessiva. No entanto, tinha sido tão excitante. Teria sido uma parvoíce ter recusado a viagem.
«Na minha opinião, as pessoas gostam muito de vir à Pena pelo Portão Principal, junto ao Jardim da D. Amélia. Chego a pensar que é por inveja do status aristocrático. Adiante! Eu escolho sempre o Portão dos Lagos.» Muito agradada «Este roteiro é fantástico!» Prático «Vamos ate lá acima. Se quiseres, fazemos a short visit ao Palácio. Refrescamo-nos no bar e vamos até Monserrat "farnelar". Que te parece, Teresa? Eu «Vamos ver os vitrais da capela?» Aceitou. «Achas que nos deixam entrar em Monserrat com o cabaz?» Peremptório «Claro que sim. Tu és a Xerazade e eu o Sultão. Impaciente, é claro, pela continuação da história da noite anterior.»



No controlo das entradas, a jovem foi irredutível. «Picnic, nem pensar!» Mudámos as sandes e as latas de sumos para a mochila e resignámo-nos a sentar na relva sob a protecção do Palácio à nossa rectaguarda.

«Viajas muito?» Quis saber. «Sempre que posso!» Eu salvaguardando «Apesar da minha resistência desta manhã...» O Sérgio, de imediato «Surpreendi-te. Aliás, as miúdas, nos dias que correm...» -- «Eu também!» Acrescentei -- «...Sim! Se se falar em viajar ou pensam em carros ou no "low cost". Impressionante!» Rimo-nos. «Já estiveste em Verona, Sérgio?» Não tinha estado. «Mas sabes da multidão que lá se desloca por causa da varanda da Julieta?» Sabia. «Sabes também que o Shakespear nunca lá pôs os pés?» Acrescentei «A varanda não tem nada de especial. Porém, o que a obra do inglês fez dela é espantoso...» Ele aguardava «...Claro que não se deve comparar uma janela com uma varanda. Mas, tanto a janela do Convento de Tomar quanto a réplica do Corpo do Palácio Novo, aqui na Pena, são ou não são muito mais elegantes?» Ele completou «Uma mulher que se debruçasse a uma das nossas janelas seria garantidamente feliz!»

Na estradada Azóia para o Cabo da Roca, apesar da ligeira sinuosidade, a partir de determinado ponto, já se avista o farol e a inesgotável imensidão do Atlântico. «Olha para isto, Teresa. Lindo, não é?! -- Rendo-me a dias como este. O esplendor da Primavera.Os campos de um verde exaltante.» Eu estava preocupada com o sol. Viajávamos para poente. O sol a baixar. Todas as cautelas eram poucas. Concordei, claro. «Hoje, está demais!» Apontou para o meu blusão «Agora, sim. Solta o lenço branco. Isso. Para fazer grinalda até lá abaixo, ate entrarmos no parque!»
Fomos até à beira da falésia. Encostado ao muro, o Sérgio, a olhar para mim, apontou para o mar, para dizer «Eu sou um puro sangue lusitano...» Sorri. «Nada a ver com os de Alter do Chão. Note-se!» Evidentemente. «...Sou transumante. Gosto de viajar. Adoro terminar os roteiros no mar. Faz-me sentir feliz!» Acabava de justificar a ida ao Cabo da Roca. Dali em diante, teríamos apenas de regressar a casa.
Ao chegarmos ao sidecar, uma aranha iniciara a construção de uma teia entre a esfera do espelho retrovisor direito e o suporte. Apenas tivera tempo de concluir dois ou três círculos concêntricos. Suficientes para apanhar um insecto. Seria possível? -- Que veleidade!
Foi então que o Sérgio disse «Amo-te!» Eu surpreendida. A voz embargou-se. Quase um sopro «Quê?» Ele, veemente «Amo-te!!»
Pausa de segundos. Uma eternidade.
«Agora, Teresa, (como nos filmes) tu deverias pedir "Beija-me!" Eu repetiria AMO-TE!!! A tarde transfigurar-se-ia. Vogando, insustentáveis, insistindo repetir tamanha felicidade.»

§§§

...subitamente, meu telemóvel reproduziu o sinal de eminente colapso por falta de bateria. A Rita mal teve tempo para perguntar «Pediste-lhe para te beijar?»