quinta-feira, 1 de maio de 2008

Vê o que ouso


Ás nove da manhã, depois de lhe abrir a porta, após toques repetidos, a Hortense insistiu em obter o meu perdão «Eu sei que hoje é Sábado. Veja. Aqui está escrito "ENTREGA URGENTE" Eu não podia deixar de cá vir, menina.» Eu a apertar o nó do cinto do roupão. Sem ouvir. A querer saber o remetente. Intrigada. A Hortense a olhar para mim. A perceber «Foi uma daquelas empresas de entregas... Veja aqui... Teresa... É para si!» Tratava-se de um volume de dimensões apreciáveis, mas leve. «Muito obrigado, Hortense.» A porteira lá foi à sua vida.


Uma hora mais tarde, tocaram novamente à porta. Um homem de compleição normal, envergando calças de ganga, blusão displicentemente desabotoado, capacete de cabedal cingido à cabeça e óculos de protecção subidos na testa, segurando na esquerda enluvada, a luva da mão direita, aguardando a minha resposta.
Era o Sérgio.
Agora percebia o conteúdo da encomenda. O capacete, os óculos, um par de luvas com um cinto minúsculo para apertar o pulso e o lenço de seda branco. Apetrechos para viajar ao relento.
Visivelmente impaciente, repetiu toque, encostou o ouvido ao intercomunicador a avaliar. Daqui de cima não chegava mais ténue indício. Consultou relógio. Hesitou. Desceu o lance de escadas da entrada do prédio. Saiu do espectro da câmara.
Eu sentia-me realmente perplexa. É certo que tinha aceite o convite surpresa do Sérgio. Sem saber no que me metia. Achei que ambos íamos esquecê-lo. Agora restava-me fingir que não estava em casa -- Uma indecência! -- ou, aceitar, se ele insistisse. Ele insistiu. Mandou mensagem "Daqui a cinco minutos estarei à porta do prédio" Cumpriu. Ainda pelo intercomunicador «Não me digas que ainda estavas deitada, Teresa. Está um dia esplêndido, miúda. O sol brilha. Vamos passear!»
Quando cheguei lá abaixo, confirmaram-se os meus piores receios. O Sérgio aguardava-me radiante «Olá Teresa!» Íamos viajar de mota «Eu não sabia que tinhas um sidecar, Sérgio.» Desconcertante «É verdade. Não tenho. Aluguei este. Para viajar sozinho bastar-me-ia a mota!» Eu ia participar numa loucura. «Nem sei se deva aceitar... Decidido «Íamos para Sintra de segway, Teresa?» Meio irritada «É seguro ir assim?» Ele olhou para mim. «Aproxima-te, Teresa.» Refez o nó. Pediu-me que resguardasse as extremidades do lenço de seda branco debaixo do blusão. «Agora senta-te no sidecar. Põe o capacete. Ajusta os óculos. Calça as luvas, enquanto eu te aperto o cinto de segurança. Nunca largues as barras de apoio. Estas aqui. Confia em mim.» Beijou-me a testa. «Num dia destes, Sintra é soberba. Já estamos atrasados!» Deu à guise e marche da mota. O ruído do motor era suave e sincopado. Apontou para o cabaz de verga atrás dele «O nosso farnel!» Seguimos.


A viagem até ao Portão dos Lagos correu sem sobressaltos. A trepidação pareceu-me excessiva. No entanto, tinha sido tão excitante. Teria sido uma parvoíce ter recusado a viagem.
«Na minha opinião, as pessoas gostam muito de vir à Pena pelo Portão Principal, junto ao Jardim da D. Amélia. Chego a pensar que é por inveja do status aristocrático. Adiante! Eu escolho sempre o Portão dos Lagos.» Muito agradada «Este roteiro é fantástico!» Prático «Vamos ate lá acima. Se quiseres, fazemos a short visit ao Palácio. Refrescamo-nos no bar e vamos até Monserrat "farnelar". Que te parece, Teresa? Eu «Vamos ver os vitrais da capela?» Aceitou. «Achas que nos deixam entrar em Monserrat com o cabaz?» Peremptório «Claro que sim. Tu és a Xerazade e eu o Sultão. Impaciente, é claro, pela continuação da história da noite anterior.»



No controlo das entradas, a jovem foi irredutível. «Picnic, nem pensar!» Mudámos as sandes e as latas de sumos para a mochila e resignámo-nos a sentar na relva sob a protecção do Palácio à nossa rectaguarda.

«Viajas muito?» Quis saber. «Sempre que posso!» Eu salvaguardando «Apesar da minha resistência desta manhã...» O Sérgio, de imediato «Surpreendi-te. Aliás, as miúdas, nos dias que correm...» -- «Eu também!» Acrescentei -- «...Sim! Se se falar em viajar ou pensam em carros ou no "low cost". Impressionante!» Rimo-nos. «Já estiveste em Verona, Sérgio?» Não tinha estado. «Mas sabes da multidão que lá se desloca por causa da varanda da Julieta?» Sabia. «Sabes também que o Shakespear nunca lá pôs os pés?» Acrescentei «A varanda não tem nada de especial. Porém, o que a obra do inglês fez dela é espantoso...» Ele aguardava «...Claro que não se deve comparar uma janela com uma varanda. Mas, tanto a janela do Convento de Tomar quanto a réplica do Corpo do Palácio Novo, aqui na Pena, são ou não são muito mais elegantes?» Ele completou «Uma mulher que se debruçasse a uma das nossas janelas seria garantidamente feliz!»

Na estradada Azóia para o Cabo da Roca, apesar da ligeira sinuosidade, a partir de determinado ponto, já se avista o farol e a inesgotável imensidão do Atlântico. «Olha para isto, Teresa. Lindo, não é?! -- Rendo-me a dias como este. O esplendor da Primavera.Os campos de um verde exaltante.» Eu estava preocupada com o sol. Viajávamos para poente. O sol a baixar. Todas as cautelas eram poucas. Concordei, claro. «Hoje, está demais!» Apontou para o meu blusão «Agora, sim. Solta o lenço branco. Isso. Para fazer grinalda até lá abaixo, ate entrarmos no parque!»
Fomos até à beira da falésia. Encostado ao muro, o Sérgio, a olhar para mim, apontou para o mar, para dizer «Eu sou um puro sangue lusitano...» Sorri. «Nada a ver com os de Alter do Chão. Note-se!» Evidentemente. «...Sou transumante. Gosto de viajar. Adoro terminar os roteiros no mar. Faz-me sentir feliz!» Acabava de justificar a ida ao Cabo da Roca. Dali em diante, teríamos apenas de regressar a casa.
Ao chegarmos ao sidecar, uma aranha iniciara a construção de uma teia entre a esfera do espelho retrovisor direito e o suporte. Apenas tivera tempo de concluir dois ou três círculos concêntricos. Suficientes para apanhar um insecto. Seria possível? -- Que veleidade!
Foi então que o Sérgio disse «Amo-te!» Eu surpreendida. A voz embargou-se. Quase um sopro «Quê?» Ele, veemente «Amo-te!!»
Pausa de segundos. Uma eternidade.
«Agora, Teresa, (como nos filmes) tu deverias pedir "Beija-me!" Eu repetiria AMO-TE!!! A tarde transfigurar-se-ia. Vogando, insustentáveis, insistindo repetir tamanha felicidade.»

§§§

...subitamente, meu telemóvel reproduziu o sinal de eminente colapso por falta de bateria. A Rita mal teve tempo para perguntar «Pediste-lhe para te beijar?»

12 comentários:

Thiago disse...

Adorei este post!! Quero mais!! Que passeio mágico...que saudades de Sintra e do cabo da Roca!

APC disse...

Não se sai de Sintra sem estórias! :-)
E sempre que aqui venho, sofro por não poder vir mais vezes, mais tempo, mais tudo. Mas ousarei voltar.

Um abraço

Teresa Durães disse...

um post belíssimo :) nada como uma história na misteriosa sintra e um por de sol no cabo da roca!

(ela beijou??)

Alberto Oliveira disse...

... há muito tempo que não sentia o vento na cara e os ares da Serra de Sintra enquanto acompanhei as personagens deste texto. Sérgio e Teresa: que futuro?
E a Rita? continua com o negócio de aconselhamento amoroso?

abraço.

Vanda disse...

Incrivel esta tua narrativa, tão cheia de preciosismos e de encantos construída!

Não sei se se beijaram ou não.


Mas acredito que o mar, esse, batia revigorado nas ondas e o céu girava em tom escarlate sobre as suas sombras :)


Bom domingo!

mfc disse...

De repente senti-te a passear, não sentada num "side car", mas tal uma Elizabeth Duncan, sentada num Bugatti.... mas sem aque fim trágico!

O passeio pode sempre ser imaginário... e nem por isso deixa de ser passeio.

segurademim disse...

... e eu a pensar que o embrulho trazia flores de Sintra
um vaso de amores-perfeitos multicolores

um dia perfeito... só faltaram as queijadas

Pedro disse...

Sintra é linda.

=)

A história é fantástica, isso é que foi inspiração. Peço por mais!

lélé disse...

Bem!... Eu fiz o filme!... Ficou giríssimo... Prefiro este género do que aquele que começa com "baseado em factos verídicos"...
Muito bem narrado (cof cof, quem sou eu para opinar?), bonito e muito envolvente.

Carla disse...

Hummm isto tem continuação?
é que eu também quero saber se ela lhe pediu par o beijar.
eu deixo-te um beijo e desejos de boa semana

isabel mendes ferreira disse...

....e assim se re.inicia as "mil e uma noites" de hoje....


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beijo.


.


a querer mais noites e dias....

Rui disse...

O Monte da Lua. Tantas histórias por entre tantos calhaus, nas vistas largas, no vento forte, na neblina que reina.

Espero que regressem em breve, para um passeio nocturno. De mãos dadas.