segunda-feira, 19 de maio de 2008

Lisboa, Rua do Alecrim

Olha-se para o mapa da cidade e a zona ribeirinha de Lisboa desenha-se em polígono de quatro faces: Parque das Nações até ao Poço do Bispo; daqui até Sta Apolónia; a seguir, até Belém; finalmente, até Algés.


Sentada na Brasileira a tomar o pequeno-almoço, mecânicamente, levantei pires com a madalena e coloquei-o em cima do mapa da cidade. Comi o bolo, bebi o café e dois goles de água. Posei o copo para reparar que o pires não preenchia o perfil da cidade exibido no mapa. Afinal que importância tinha? -- Nenhuma! -- Ao afastar o pires do mapa notei que, colocado naquela posição, o seu arco de circunferência exibia, num mesmo plano, o Chiado e o Jardim Botânico da Ajuda.


No Chiado, sozinha, pelo projecto de filmar e fotografar Lisboa de uma cintura intermédia da sua orografia. Prosaicamente, queria formar uma ideia de Lisboa, da sua "ilharga" para baixo. O Filipe deveria estar a acompanhar-me. Tínhamos combinado que ele filmaria enquanto eu fotografasse o trabalho. No Chiado faríamos o primeiro ensaio. O ponto de captação de imagens estava escolhido: a esquina da Igreja do Loreto confinante com a Rua da Misericórdia, Largo Camões e final da Rua do Alecrim. Exactamente aí. A lente apontaria ao Tejo, à outra margem, onde alcançasse, para captar imagens que correspondessem às possibilidades humanas, ao quotidiano dos lisboetas e da sua relação com o Tejo. Escalonando o zoom, faríamos registos de 4 a 5 aproximações para ponto de partida de análise de planos. «Fica descansada, Leonor. Não irei "borregar". Quem primeiro chegar, espera!»


Coloquei o tripé na esquina do Loreto e ensaiei vários disparos. Revi as fotografias. Ajustei o equipamento e repeti o ensaio. O resultado foi diferente e já me satisfez um pouco. Novo acerto e, então sim, encontrara o ajuste. Nas primeiras séries de fotografias respeitei a escala do zoom nas quatro divisões planeadas. A seguir, procurei aproximações aleatórias. Era muito cedo. Amanhecia devagar e as tonalidades progrediam suavemente. Os Elementos concediam-me a oportunidade de fixá-los. Excitavam-me benignamente. Deslumbrada, fotografei tenazmente. Calmo e apaziguado, quase indolente, o Tejo deixava-se arrastar na vazante enquanto Almada, vendo apagar-se, em séries sucessivas, os candeeiros de iluminação pública, agitava-se para mais um dia de azáfama.






Passam trinta minutos das dez da manhã. É inacreditável a atitude do Filipe. Não há desculpa aceitável para um atraso de duas horas e meia. É sempre a mesma coisa.


Liguei para o telemóvel do Filipe e deixei tocar longamente. Paguei a conta e pedi ao empregado para deixar na mesa a sinopse do trabalho desta manhã. «Se daqui a bocado ele aparecer, dê-lhe esses papéis -- Há-de vir esbaforido! -- Caso contrário, olhe, deite-os ao lixo!» Gratifiquei-o para me assegurar que seria zeloso. À volta do pulso direito de Fernando Pessoa abandonei um lenço que o Filipe me oferecera pelos anos. O parvo era capaz de pensar tratar-se de um sinal, da paciente espera. Fui ao Turismo no Palácio Foz. Um mapa de Lisboa com escala ajudar-me-ia a escolher os restantes pontos de trabalho. Além do Chiado e do Jardim Botânico, muitos mais haveria para explorar.


Na Praça da Figueira fui ao CiberCafé consultar a Net. Numa fúria desbragada, abri a página da Sapo e cliquei o link "MEO". Uma vez lá, inscrevi nos campos desenhados para eles, o nome, a morada e o telefone do Filipe. Voltei a clicar e, seráficamente -- ao assegurar-me que ele receberia uma chamada do Ricardo Araújo Pereira e dos Gatos Fedorentos a publicitarem o serviço da PT, eu sei lá as vezes que insisti! -- rejubilei. Tamanho massacre...O Filipe merecia outra coisa?! -- Desaparecia, perdia-se de vista... Como o Tejo...

16 comentários:

Anónimo disse...

não me admiraria que os gato fedorento se inspirassem neste texto para uma das suas fabulosas rábulas, duarte. um beijinho. boa noite :)

Justine disse...

Foto perfeita. E a história ajudam-nos a vê-la com os olhos completamente abertos :))

lélé disse...

Foi uma lição de fotografia e uma narrativa fotográfica!

A vingancinha foi bem pensada... mas suave demais!...

Teresa Durães disse...

a espera pelos outros que se esquecem do prometido. A vinçança estava perfeita

Carla disse...

deixei-me viajar com as tuas palavras
beijos

segurademim disse...

as fotos com a luz do amanhecer são fabulosas

tiveste sorte com a saia

tem movimento, cor, vida...

sem desesperos a equipa perfeita formou-se, mediada pelos ciber cafés
um fotografa a manhã, o outro fotografa a noite -> melhor era impossível

Nilson Barcelli disse...

Ainda que a foto que mostra o Tejo e a antiga Lisnave tenha sido feita de tarde (não há crimes perfeitos...) a tua crónica é excelente.
E terminada com um toque de vingança a preceito. Muito bem.

Abraço.

poetaeusou . . . disse...

*
há muitos,
muitos anos,
ia a pé do príncipe real
ao cais do sodré,
,
cibercafé ?
nem o café da coxa, amigo
,
isto vem a propósito de quê ?
,
olha . . . saudações
,
*

isabel mendes ferreira disse...

...da alma. em geografia....

ou da geografia de uma alma à solta na "cartografia" de todos os olhares.


atentos.


beijo.

Rui disse...

Talvez ele merecesse o número de telefone grafitado numa casa de banho público, com uma mensagem ansiosa e de disponibilidade. Sim, que a Leonor parece ser mulher para encarar tal desafio de frente.

Lyra disse...

Viajo no tempo e no espaço, sentindo a emoção da imagem e de cada palavra aqui lida e bebendo detalhadamente as lições de vida que essa viagem me dá.

Beijinhos e até breve.

;O)

mfc disse...

O "script" está perfeito. A ira é mesmo assim...

Pedro disse...

A foto está espectacular.

Lisboa é aquele pano de fundo que... encanta, pelo menos a mim.

Se o Ricardo araújo Pereira ler isto, das duas uma: ou ri-se ou compreende perfeitamente!

Acho que a história só ficaria completa se esse Filipe aparecesse para a vingança ser ainda pior... =D Mas nada de rancor. Aliás, adorei as tuas últimas frases!

Maria Clarinda disse...

Excelente o teu texto, e que senhora lição de maneiras de fotografar.
Adorei...esta crónica!!!
Jinhos mil

Maria Laura disse...

És concerteza um especialista tanto de fotografia como da escrita e da arte de prender o leitor. Excelente texto, sobretudo se nos formos situando geograficamente nos locais e "viajarmoa" por Lisboa.

Alberto Oliveira disse...

Uma história que se lê como quem passeia pela cidade branca. De manhã, de tarde ou mesmo à noite a foto está lá para que não haja qualquer dúvida: Lisboa tem o Tejo e... tudo.
Faltou pouco para me tornar figurante (ou figurão?) na outra margem, de mais um guião para uma curta. Belo!

Abração.