segunda-feira, 12 de maio de 2008

«O TRINCA-FORTES»

A Celeste aguardava-me no jardim. Cumprimentámo-nos efusivamente. «Fizeste boa viagem, Carlos?» Eu a acenar «Sim! -- Não havia meio de chegar!»

Conhecemo-nos há trinta anos. Talvez mais. Eu era colega do Rogério. Quando eles casaram aceitei o convite recusando ser padrinho. Mais tarde, transferiram-se para Torres Novas. Tiveram um filho. Reconstruíram a casa dos pais da Celeste em Constância. Vim uma ou outra vez às Festas da Nossa Senhora da Boa Viagem. Um AVC fulminou o Rogério. Não fui ao funeral por ter entrado em urgência hospitalar para tratar uma hérnia. «Há quanto tempo não nos víamos?» Eu emocionado «Uns anitos, Celeste!» Como a minha bagagem se resumia a uma mala-trólei e dois sacos, optámos por ir a casa depois de almoçar no «TRINCA-FORTES». (*)
(*) Foi Luís de Camões. Parece que, após perder o olho direito em Ceuta e regressado a Lisboa, se envolveu em brigas e arruaças, o que deu origem à alcunha.
§

Cheguei a casa às 4. O meu avô já cá devia estar. Como vinha preocupado com a nega a matemática, nem quis saber.A minha mãe ao telefone «Porque é que não ligaste, Bruno?» -- «Estava a lanchar, mãe!» -- «O teu avô?» -- «Estou sozinho!» -- Liguei lá para casa, não respondeu.» -- «Anda por aí!» -- «A escola como correu?» Eu ia relatar a nega «Já volto a ligar. Vê se estudas até ao jantar!» Voltei à cozinha. O toque que ouvi não era o do meu telemóvel. A insistência vinha do quarto dos meus pais. Era a minha mãe. «O teu pai já está em casa?» -- «Não, mãe. O pai esqueceu-se do telemóvel!» -- «O teu avô já chegou?» -- «Ainda não!» -- «Já começo a ficar preocupada... Deixa lá!» Desligou. Havia uma mensagem do meu avô no telemóvel do meu pai «Zé, vou passar uns dias a Constância. Beijos»

§


Quando o meu pai chegou a casa já a minha mãe e a tia Matilde tinham conversado longamente. Não se lembravam de ninguém que vivesse em Constância e fosse amiga do meu avô. Mais grave ainda, anoitecera e ele não voltara a dar sinal de vida. «Aonde andas com a cabeça, homem. O teu pai enviou-te uma mensagem, e tu, nada...» O meu pai a caminho do quarto «Aonde vais? A porcaria do telemóvel está aqui. Conheces alguém em Constância que seja amigo do te pai? A Matilde não conhece...» O meu pai a ler a mensagem, depois a ligar, a irritar-se "O número que marcou, de momento, está indisponível." a dizer palavrões. Eu a pensar «Se agora falasse da nega a matemática imolavam-me.»A tia Matilde veio cá a casa depois do jantar. O meu pai quis que ela o acompanhasse a casa do meu avô. Alguma coisa, um indício, podia ajudá-los. Numa saída tão extemporânea como aquela podia ter deixado para trás um contacto precioso. «Liguei para a BT da GNR não há registo de qualquer acidente que tivesse envolvido um Micra. A Brisa recusou-se a indicar, pelo telefone, a matrícula da passagem pela portagem. O pai tinha Via Verde, Zé? » Não sabia. «Se calhar até foi pela estrada nacional, forreta como o avô é!» Disse eu. «E se estivesses calado -- Chatice!» A minha mãe «Vou ligar para os hospitais.» A minha tia «Também não registaram entradas com o nome dele, Clara.» Voltaram de casa do meu avô muito mais desanimados. Não tinham encontrado nada. «Bom. Ele não é uma criança. Estamos a tentar contactá-lo. A fazer tudo o que está a nosso alcance. Não acham que é cedo para comunicar o desaparecimento à polícia?»
§

Quando ia para o meu quarto ouvi a tia Matilde dizer a meu pai «Tu não me digas que pai arranjou uma namorada?!» O meu pai angustiado «Eu sei lá! A única coisa que sabemos é que foi para Constância e está incomunicável. E eu pensei «Fogo! O meu avô é do caraças! Tem um problema maior do que o meu. Eu ando à brocha com o Teorema de Pitágoras e com a merda da nega a matemática; ele com uma namorada -- Quem me dera pudermos trocar. -- Qual de nós irá "chibar" primeiro!»

António Botelho


Pode um desejo imenso

Arder no peito tanto

Que à branda e à viva alma o fogo intenso

Lhe gaste as nódoas do terreno manto,

E purifique em tanta alteza o espírito

Com olhos imortais,

Que faz que leia mais do que vê escrito.»

Luís Vaz de Camões

Ao jantar a Celeste preparou uma ementa irresistível. Não me cansei de elogiar. Modestamente «Não exageres!» Era verdade. A única coisa que esteve ao meu alcance foi ter ido à loja de vinhos fazer uma escolha adequada. Resultou. «Que te pareceu o vinho, Celeste?» -- «Uma delicia, Carlos! -- Não pesa na cabeça. Um veludo!» «Ainda bem!» Pensei. A conversa evoluiu naturalmente até chegar a comparação do quotidiano de Lisboa e do Ribatejo. Ambos concordámos que é muito diferente estar aqui em Constância e ir a Lisboa sempre que se quiser. A Celeste acrescentou «Não perco um fim-de-semana aqui. Constância enche-se de gente nova que aqui vem para petiscar, palpitar por Camões sem saber que "O TRINCA-FORTES" era ele...» Eu «Alguns, sabe-lo-ãoEla «Poucos, presumo!» Efusiva «...Constância enche-se. Há movimento. Alegria. Emoção. A canoagem movimenta gente como nunca vi. É bom ver a juventude a praticar desporto. Não achas?!» -- «Claro que acho bem. Mesmo não parecendo, são meninos para recitar um soneto às namoradas e derretê-las! -- Não é por acaso que aquele restaurante se chama "PEZINHO NO RIO"» Concordante «Mas tens dúvidas?!» Mudando o tom «Acreditas que eu, em Lisboa, me aborreço deveras? Ao pé de minha casa houve um coreto. Removeram-no. No lugar instalaram um quiosque. Agora nem isso funciona. Vivo numa zona tão soturna que nem os gatos miam ou os cães ladram. Até parece que alento o poema de Cesário Verde...» A Celeste empolgada «Nas nossas ruas, ao anoitecer,/ Há tal soturnidade, há tal melancolia,/ Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia/ Despertam um desejo absurdo de sofrer. (...)//» Eu «Acreditas, Celeste, que até as luzes da praça enfraquecem? -- A praça desaparece. Um desamparo total!» A Celeste a olhar para mim, muito séria «Verdade?» Eu, cabisbaixo «Sim!» Espontânea «Que tal passares mais tempo comigo, aqui em Constância?» Beijei-a.

§

Quando o Bruno ouviu a voz do avô deslumbrou-se. «Olá, '! 'Tás aonde?» Alegre «Em Constância! -- Tudo corre bem. Diz aos teus pais e à tia Matilde que estamos bem.» Eu «Estamos... Estás com quem, '?» Pausa «Estou com a Celeste. Uma amiga, Bruno Eu «Ah, bem! Ok, '!!» Ele, entusiasta «Há aqui um clube de canoagem. Queres vir até cá?» Eu resignando «Tive nega a matemática, '. Ainda não disse aos meus pais.» Peremptório «Promete-lhes que vais estudar para passar. Deixar-te-ão vir. Vou buscar-te ao Entroncamento. Diz-lhes que eu também tenho uma surpresa para eles. Valeu!» Desligou.

10 comentários:

Lyra disse...

Hoje estou muito bem disposta, por isso quero apenas partilhar esta emoção deixando aqui um grande beijinho. Quero desejar-te uma excelente semana e agradecer as palavras e amizade que tens depositado no meu...caos.

Até breve!

;O)

pin gente disse...

gostei muito... acho que vou a (para) contança.

abraço
luísa

Carla disse...

que belas lembranças...apetece partilhar
boa semana
beijos

Anónimo disse...

gostei do poema do camões no meio deste bonito texto :) um beijinho*

Nilson Barcelli disse...

Um excelente texto, que pode ter continuidade, dado o suspense do final.

Abraço.

Rui disse...

O "Trinca-Fortes" é o avô. A Celeste que o diga.
Aposto que queria o neto em Constância para lhe mostrar que ainda sabia derivar...

Alberto Oliveira disse...

...no teatro da vida, até o neto representa e o vate faz uma perninha. Bem me podias ter convidado para fazer figuração, que me pelo por pisar o palco.

Conto curto com... as medidas ideais.


abraço.

sonjita disse...

Então o amor pode realmente ser eterno... o teu texto fez-me acreditar que sim...

Com histórias assim os meus olhos mortais fazem-me ler mais do que aquilo que vejo escrito... (belas palavras as de Camões)

BJokas

segurademim disse...

... espero que vá à canoagem antes de dizer aos pais da nega!!!

vai gostar de ver o avô que brilha que nem pirilampo

Pedro disse...

Os teus textos são sempre inspiradores! Gostei, mais uma vez, e este texto é super interessante quando descobrirmos o verdadeiro significado das coisas.