terça-feira, 27 de maio de 2008

ANA K

O Vasco ligou-me «Ana, sabes qual é a única ilha portuguesa onde se chega de comboio?» Não estava à espera do telefonema e nem fazia ideia. «Não! -- Qual é?» Ele, desafiando «Que tal irmos até lá este fim de semana?» -- «Onde fica a ilha?» Confiante «Praia do Barril.»

A Praia do Barril situa-se na Ilha de Tavira. O areal é muito limpo e a praia relativamente larga.
Para lá chegar há que transpor o Canal de Tavira através da ponte pedonal flutuante, na orla das Pedras d'El Rei e depois, percorrer o passadiço até às antigas instalações da pesca do atum -- adaptadas ao comércio, restauração e esplanadas -- ou embarcar nas carruagens abertas puxadas por uma locomotiva a diesel disfarçada de máquina a vapor.




O casal que está sentado nestas cadeiras é um dos mais famosos da Europa.
Ela veste roupa branca, com debruados azul-marinho muito discretos, levíssima: camisola de algodão sem mangas e com gola de marinheiro com a habitual geometria rectangular onde sobressai uma faixa dourada, mais estreita, entre duas azul-carregado. O calção até ao joelho tem também uma faixa dourada mínima a fingir uma bainha com virola.
Ele veste camisola de algodão de manga curta, sem gola, abotoada desde o esterno. Calção, também até aos joelhos, do mesmo padrão da camisola. Adereço completo às riscas azuis.
Quando jogaram "ao ringue" não deixei de reparar no cinto acetinado dela a acentuar a elegância, a harmonia e proporção do corpo. O dele é atlético, altivo, de uma compleição trabalhada. Um corpo talhado para uma patente militar.
Agora repousam.
Apesar da suavidade da brisa, por serem mais largas as abas, mais insistentemente a senhora corrige o ajuste do chapéu na cabeça. Ele baixou ligeiramente a pala para os olhos parecendo acalentar um certo letargo.

O Vasco não acredita «Pode lá ser, Ana!» Ninguém me tira essa da cabeça «São eles: a Anna Karenina e o Conde Vronski!» Impaciente «Não digas uma coisa dessas, Ana.» -- «Digo pois! Por acaso reparaste que falam russo?» -- «São exibicionistas, Ana!» -- «Não digas isso. São aristocratas. Genuínos!» -- «Já sei, rasparam-se do livro sem Tolstoi saber e vieram para Portugal. Nem para Nice, nem para Barcelona, vieram para a Praia do Barril. Logo terão um encontro com a Diáspora!» -- «Estás a ser parvo!» -- «Ok. São aristocratas! Se isso te excita tanto porque não lhes falaste?» -- «Quem te disse que não falei?» -- «Ai, sim! Falaram do quê? Do tempo, da vida... Diz-me, ela ainda se sente vazia? Falou-te do cansaço que é deixar-se esmagar pelo comboio de cada vez que um exemplar do livro é vendido? Também acho demais! E aquela bitola dos caminhos de ferro russos...» -- «Estás impossível, Vasco!» -- «Admitamos que são eles. Vieram para se reconciliar. Disseste-lhe que também a Emma Bovary se sentiu vazia e acabou ingerindo veneno? Isto é um inqualificável absurdo. Se eles falharem a reconciliação ela fará o quê, atirar-se para a linha do comboio daqui da ilha ou esperar pelo TGV? Aristocratazinha pueril...»
Abdiquei de replicar. Fui-me embora... Virei-me na cama.




Então, quando vínhamos da praia, a conversar, ouviu-se o silvar bucólico do comboio. Sobressaltei-me. A Anna vinha soturno. Sombria. Menos faladora do que no primeiro encontro.
Meio metro antes da máquina da composição ficar ao nosso lado, dei uma passada para a minha direita. Com a Anna à minha esquerda eu constituiria um obstáculo entre ela e a locomotiva. Havia que frustrar nova tentativa de suicídio. É tão desagradável. E letal! Além do mais, ela é tão bonita, tão bela... De repente escorreguei e fui apanhada pelo comboio. O Vasco e o Vronski vinham atrás. Falavam de bola. O Conde estava loquaz. Já dizia mais «DA» (Sim!) do que «NIET» (Não!). Mas não percebia porque é que um russo, seu compatriota, resolvera comprar o Chelsea. «Business!!!» Esclarecia o Vasco, com indisfarçável excitação, piscando o olho ao mesmo tempo. Quando senti a máquina esmagar-me as pernas dei um grito lancinante. Ainda ouvi, quase em uníssono «ANA!!!» «AHHA!!!» Eu alucinava antes de morrer. A Anna Karenina desmaiou e as pessoas que quiseram prestar os primeiros socorros ficaram divididas. O maquinista gritava «Não tive maneira de travar. Que desgraça!»

Alguém colocou um espelho à minha frente. Não perto da boca ou do nariz para medir o "Rigor Mortis". Não! Foi o Vasco, a acariciar-me o pescoço, a segredar-me que eu era muito mais bonita que a Anna, que com ou sem o wonderbra punha a Eva Herzigova, ou quem viesse, a um canto. E que deixasse a Anna Karenina em paz. Acordei, é claro. Mal refeita do pesadelo. Espreguicei-me lânguidamente. Já não sentia nada nas pernas. «Tens dúvidas?» Eu deleitada. Ele continuou. «Uma vez li que um espelho serve para ver objectos no espaço e sentimentos no corpo. Revê-te!» Beijámos-nos. Beijám... beij...

Mais tarde, o Vasco explicou-me que aquele «AHHA» do Vronski não era uma exclamação para a derradeira reprise do suicídio de Anna. Mas sim, a maneira como os russos escrevem Anna.

Pergunto: os afectos previnem as cãibras?

14 comentários:

segurademim disse...

... não, mas o frio sim!

podes dormir com os pés de fora verás que os sonhos são mais calmos e menos sobressaltados

isso de ficar sem pernas é dramático, em russo, maltês, ou chinamarquês

Alberto Oliveira disse...

José,

Uma história hilariante, que se lê de um fôlego e com a criatividade a que já me habituaste.
Não foste de modas: nada de projectos de travessias sobre o Tejo. Construiste sem delongas, a "ponte" entre os russos do combóio a carvão e os da actualidade que compram "emblemas" desportivos como quem compra batatas. E ainda tiveste tempo de "esmagar as pernas" à narradora... "amarrada" ao leito.
Depois eu é que invento coisas...


abraço.

Justine disse...

Surrealismo puro, mas à moda de Tolstoi, para ser ainda mais surrealista.
Deliciosa história,muito bem escrita, que nos faz esvoaçar entre os sonhos e a literatura.
Parabéns.

Nilson Barcelli disse...

Gostei de ler esta história.
Bem escrita e agradável de ler.

Abraço.

Teresa Durães disse...

não penso que o façam...

saudades dessa praia!

OUTONO disse...

Uma verdadeira surpresa em cada palavra...

Um abraço

lélé disse...

Acontecia-me, em sonhos, falar fluentemente inglês ou francês!... Russo, nunca consegui, mas acho que era porque, na verdade, só conhecia a palavra "pravda"... Depois da "gasnost", optei por deixar que acontecesse ao contrário e agora, até os japoneses falam português!...
Acho que os afectos previnem as cãibras, sim, porque diz-se e muito bem, que quem avisa amigo é.

lélé disse...

Correcção (desculpa): "glasnost"

Lyra disse...

Adorei ler-te. Imaginação prodigiosamente "artistica" (risos).

Quantos aos afectos prevenirem...eu acho que previnem tudo, não só as cãibras.

Beijinhos e até breve.

Carla disse...

não sei se previnem, mas que os afectos oferecem sorrisos, disso não tenho dúvidas...
... e quem não gosta de sorrir!
beijos de bom fim de semana

Rui disse...

Previnem, antes de mais, as cãibras emocionais.
Para as outras, recomendo afectos - indicados para todas as maleitas do invólucro - e também a ingestão diária de alimentos como espinafres, brócolos ou sumo natural de laranja. Adicione-se à dieta, a leitura dos clássicos e um trago(zinho) de vodka.
Aproveito para contra-indicar os acidentes ferroviários - e outros. Mesmo em sonhos.

luis lourenço disse...

Talvez previnam, pois não nos deixam na ociocidade de tudo ou nada fazer sempre pela via mais fácil.
Aprecio a prosa e os conteúdo do seu blog a quem atribui, há uns tempos um selo de amizade e de qualidade[ esqueci de avisar, como devia pelas regras].
Tudo isso porque a brilhante bloguista Clara-imagensdomeumundo- também me nomeou nessa campanha.


Com apreço

Maria Laura disse...

Uma delícia de texto. Que inaginação prodigiosa tu tens e como ligas facilmente épocas e locais que ninguém se lembraria de ligar! Muito bom.

MARIA MERCEDES disse...

Palavras levam-nas o vento...e esta prosa, chegou até mim, na brisa matinal que arrefece o café acabado de fazer. Foi o doce que faltava!

beijinho e obrigada pela amável visita ao Excitações