sábado, 6 de setembro de 2008

SILKY


«Outside of a dog,
a book is man's best friend.
Inside of a dog,
It's too dark to read!»
Groucho Marx


1.
A Isabel morreu.

É difícil imaginar como é que um adulto cai falésia abaixo tal como, se a tese do homicídio for comprovada, um adulto acompanhado de um cão não resiste a uma investida, não evita a morte.
Como o resultado da autópsia é desconhecido, os rumores insistem na profusão de escoriações em extensão e profundidade de tal ordem que não teria sido possível comprovar as causas da tragédia: queda em consequência de consumo de droga ou álcool; brincadeira com cão seguida de desequilíbrio; suicídio; homicídio com utilização de arma branca ou de fogo.

Naquela tarde de Maio a temperatura rondaria os 25º C. O cadáver foi resgatado -- havia uma hora que a maré começara a encher -- com um anorac escarlate vestido. O vento agreste é uma justificação aceitável?

2.
O Sérgio, o grande entusiasta das pescarias, estranhou ver o Paulo aproximar-se de mãos nos bolsos. «A cana, Paulo? -- Afinal esta tarde não podemos demorar, Sérgio» A Isabel «A pescaria fica para outro dia.» «Alteração de planos!» Acrescentou o Paulo. Para o lado oposto onde os deixava, a Isabel voltou para o carro com o Silky «Não te esqueças que estou à tua espera, Paulo. -- Não demorarei.»
Onde a falésia menos acentuava o Sérgio e o Paulo desceram uns quinze metros. A partir daí o Sérgio começou a iscar e por ali estiveram a beberricar cerveja e a conversar.
Subitamente, o Silky apareceu lá no alto, ofegante, agitadíssimo, a ladrar intensamente. Correram para carro. A Isabel jazia no fundo da falésia. Morta. O corpo desfeito. Desesperado, o Paulo quase repetia a tragédia na ânsia de socorrer a mulher. Chamaram socorros.

O INEM recolheu o cadáver; o Paulo foi levado ao hospital, em estado de choque.
O Silky passou pelo veterinário para tratar as feridas no pescoço, tamanho foi o esforço para se libertar do guarda-lamas do carro.
A polícia colocou o carro e o cão em sequestro para averiguações e iniciou a recolha de indícios e testemunhos.

3.
O Sérgio estava com o Paulo. A ida à pesca havia sido combinada há dias. O Lencastre e o Artur estiveram presentes. Comprovariam.
Uma senhora de idade avançada lembrava-se de, vinda da falésia, ver passar uma jovem de anorac atado à cintura. Perguntada a cor, hesitou. «Seria escarlate...» Ao saber que a Isabel também vestia escarlate, ficou tão confundida que o seu testemunho enfraqueceu irremediavelmente.
O Artur lembra-se vagamente de ter visto uma jovem de cabelo escuro, curto, com um anorac azul «A cor da gola? -- Não sei precisar... É curioso... Pareceu-me escarlate... Agora me lembro que não era...» A jovem não vestira anorac. Atara-o simplesmente à cintura. «Disso tenho a certeza!» Mas não lhe deu qualquer importância. Esteve com o Lencastre na pastelaria. Poucos minutos passavam das cinco. Estava-se no intervalo da bola.
O Lencastre confirmou ter assistido à conversa sobre a pescaria. Não viu, nem entrou no estabelecimento qualquer jovem ou outro estranho. Soube muito mais tarde da tragédia quando passaram o INEM e os bombeiros.
Depois de um longo esforço para controlar o choro, a tragédia daquela família, a D. Eunice garantiu tratar-se de um casal exemplar, de comportamento irrepreensível, sociável. «Ainda bem que atrasaram a vinda de um filho... Uma desgraça destas... Quem cuidaria dele!»

4.
Quinze dias depois, o Silky desapareceu.
O Paulo ficou muito inquieto. Participou à polícia.
O Artur reuniu o Sérgio e o Lencastre e os três, temendo o pior, cada vez mais inclinados para o homicídio, resolveram tentar falar com o inspector que conduzia a investigação. Apesar de torcer o nariz à iniciativa de protecção informal acedeu, desde que D. Eunice aceitasse ceder-lhes apartamento do R/c. Diariamente, a horas incertas, alguém da polícia "bateria o terreno".
Quando o Lencastre se preparava para fazer o pedido à D. Eunice, esta chamou-o para lhe dizer «Ouve lá, Lencastre: é preciso ferver o chá desta maneira... Concentra-te no que estás a fazer. O teu serviço... Até parece... Bem, sabes uma coisa: o Paulo pediu-me para mudar para o sótão. Só e sem o Silky, disse-me não precisar de tanto espaço. Acrescentou, satisfazer assim um desejo de miúdo -- Nesse caso, fingiremos ir lá visitá-lo para o ajudar a mudar -- Vês, és amigo! -- D. Eunice, eu também queria fazer-lhe um pedido -- Diz!... Trouxeste o adoçante?... Deixa lá! -- Precisamos do seu R/c Dto para precaver algum acidente. -- Achas que o Paulo corre perigo? -- Achamos que será melhor para si e para ele tomarmos esta precaução. Nem ele, nem ninguém poderá saber, D. Eunice. Podemos contar consigo? -- Podem! Também eu acho muito estranho o desaparecimento do Silky. -- Se alguém com uma conversa estranha pretender alugar um apartamento seu, avise a polícia e diga-nos também, valeu?»

______________________
Conclusão na próxima edição.

12 comentários:

luis lourenço disse...

Viva JPD!

A imagem é um encanto...a contrastar com a tristeza da tragédia que se adivinha...no final deste enredo para triller?
a narrativa está muito bem escrita...e o suspense está lançado...E mesmo que seja ficção voltará certamente a ser realidade.

Bom fs

mdsol disse...

Cá fico à espera...
:)

Pedro disse...

Primeiro: a imagem está espectacular.

Depois, o texto:
trágico. E em certas alturas pormenores parecem insignificantes, mas nunca o são quando recheiam a história.

Espero pela conclusão... Embora policiais não sejam o meu forte, espero pelo teu texto!

Graça Pires disse...

Bela narrativa dramática e policial. Com "suspense" e tudo.
Virei ler a continuação.
Um beijo.

Vanda disse...

Há quem diga que o suicidio é uma ideia que atravessa a mente repentina e sorrateiramemte...

Há quem diga que os animais procuram os donos, qundo sentem a sua ausencia, acabando por se perderem também...

Espero para ler o final da tua cronica...e saber que fim escolheste tu para este mistério...

Beijo, boa semana...

OUTONO disse...

Não quero ser o inspector Maigret...(curiosamente num acaso, estive a almoçar na mesa sempre reservada por ele...em Paris), mas adivinha-se o final. A não ser...e nisso és experimentado, que surja um daqueles finais "traiçoeiros".
Tiro o chapéu...à narrativa...muito envolvente de mistério "confuso"...
Confessa...vais realizar um filme, ou escrever um "triller", e estás a ensaiar a recepção !?

Não vou perder o próximo capítulo.

Abraço.

Justine disse...

Não é justo! Estou sem fôlego, e fico a roer as unhas, à espera do fim da história...

Carla disse...

espero...em ansiedade!
A descrição está perfeita, o suspense criado...volto já à espera do final!
beijos

pin gente disse...

e logo eu que adoro policiais vim aqui encontrar um potencial best seller.
volto, jp... estou super curiosa.
abraço
luísa

pa - a falésia é lindíssima... aquele azul "não existe"

Nilson Barcelli disse...

Um belo conto.
Cheio de mistério e suspense.
És mauzinho, devias ter clocado o texto todo...
Fico a aguardar, estou curioso.

Abraço.

Teresa Durães disse...

espero pela conclusão de uma história em pleno suspense

Lady disse...

Existe uma pequena frase... suspeita...
Mas aguardei pela próxima edição...

Jinhos