domingo, 28 de setembro de 2008

Num lugar irreal



«Num lugar irreal,
refém das suas imagens e dos seus reflexos,
é difícil perceber o que se passa à volta»
Diogo Lopes
In Público:

«A 11ª Exposição Internacional de Arquitectura da Bienal de Veneza»


1.
Moramos num bairro de vivendas com um jardim a ladear o piso térreo e um primeiro andar sem varandas.

Desde o volume à disposição do edifício na área de construção, o arquitecto replicou um único desenho e desejou que os ocupantes respeitassem e estabelecessem a diferenciação entre vizinhos através da pintura da casa e do ordenamento do jardim.
Essas regras têm sido cumpridas.

Esta manhã, um empresa de construção instalou na vivenda à frente da nossa uma estrutura de madeira encostada à fachada. Sobre essa estrutura, desde o beiral até meio do pé direito do rés-do-chão, fixaram -- numa inclinação de báscula travada a dez graus aquém de um ângulo recto, como se tratasse de um cavalete invertido -- painéis espelhados.
Agora, sempre que viermos à janela da nossa casa, o que vemos, qual efeito Torre de Pisa, é a nossa vivenda inclinando-se, reverencial, replicada para nós.

2.
A minha mulher não gostou. «Não pode ser. Agora ficávamos reféns da nossa imagem!»

Na esquadra, o espanto do agente de serviço foi enorme. Reticente, aceitou a queixa contra "desconhecidos" enquanto foi opinando que a Junta de Freguesia ou o Urbanismo da Câmara Municipal é que deveriam intervir.
O Piquete de Emergência da Câmara não reconheceu o problema e recusou agir.
A Gestão do Condomínio aceitou avaliar a situação -- cobriria os painéis espelhados, sim, mas só depois do fim-de-semana -- mas não foi capaz ou não quis explicar como é que alguém entra no condomínio para executar uma instalação daquelas.

3.
A qualidade das imagens captadas pela câmara de vigilância era muito má.
Ter-se-á realizado uma festa na casa.
Os convidados aproximaram-se apeados e mascarados:
Dois palhaços, ela com bola-de-nariz azul celeste e ele com bola vermelha; uma alforreca esquálida, cheia de verdes e transparências, rodeada de fitas de tule brancas, quais tentáculos a rebentar de veneno irritante, dependuradas das extremidades da copa de um chapéu-de-chuva, um esplendor de nuances; um cavalo-marinho lento e solipsista; duas meias cascas de mexilhão que à entrada se fecharam para simular a unicidade bivalva; uma sapateira na sua perene indecisão de avanço/recuo, esquerda/direita, demorando uma eternidade à entrada da festa...

Uma falha de corrente impediu a continuação da gravação.

«(...)
Os habitantes de Valdrada sabem que todos os seus actos são ao mesmo tempo esse acto e a sua imagem especular, a que pertence a especial dignidade das imagens, e esta sua consciência proíbe-os de se abandonarem por um só instante ao acaso e ao esquecimento. Mesmo quando os amantes dão voltas aos corpos nus pele contra pele procurando a maneira de se colocarem para ter um do outro maior prazer.
(...)
O espelho ora aumenta o valor às coisas, ora o nega. Nem tudo o que parece valer muito por cima do espelho consegue resistir quando espelhado. As duas cidades gémeas não são iguais, porque nada do que existe ou acontece em Valdrada é simétrico: a cada rosto e a cada gesto respondem do espelho um rosto ou um gesto inverso ponto por ponto. As duas Valdradas vivem uma para a outra, olhando-se continuamente nos olhos, mas não se amam.»
(Pg.55/56)

"As Cidades e os Olhos"
In:
«AS CIDADES INVISÍVEIS»
Italo Calvino
Ed. Teorema

20 comentários:

Justine disse...

E assim vai ficar impune mais um crime ambiental:))Sentido de humor em excelente forma!

E a eterna questão da vida e do seu reflexo, no belo texto do Calvino

isabel mendes ferreira disse...

tb. eu..... tanto.



e há tão pouca, hoje.


o meu abraço.



"calvinadivinamente!".

Vanda disse...

Jota

por fim, hoje, pus as leituras da Gaiola em dia! :)

O atraso não é mais que o reflexo da ausência de tempo. Espelhada (espero eu) fica a satisfação pela leitura! :)

Um beijo e uma boa semana para ti...

Maria Clarinda disse...

E aqui me perdi...adorei! Italo Calvino sempre...
Espelhos...
belo o teu post e faz pensar, pensar bastante.
Jinhos

Graça Pires disse...

Há sempre pessoas dispostas a alterar as regras que a todos pertencem. Italo Calvin sempre magistral.
Um beijo.

Teresa Durães disse...

que estranha lembraça essa do espelho...

Teresa Durães disse...

* lembrança

Rui disse...

Recebi um convite para essa festa. Era de máscaras e subordinada a um tema: "A Revolta da Caldeirada". Não fui. Não tinha nenhuma máscara passada a ferro e para caldeirada, achei que já me chegava o dia-a-dia. Percebo agora que fiz mal: brincar com espelhos é do melhor que há, mesmo correndo nós o risco (et pour cause) de nos cortarmos.

A Respigadeira disse...

Que texto maravilhoso! Adorei o sentido de humor utilizado para retratar o surrealismo (ou realidade?) da situação.

Beijinhos e obrigada pela partilha.

Alberto Oliveira disse...

Caro José:

Vivemos cada vez mais sitiados em lugares que desejamos de arquitectura irreal mas que não são mais qua a pura das realidades do quotidiano. Um destes dias(?!) havemos de nos teletransportar da sala de jantar para a cama, de casa para o emprego ou para 12ª Bienal de Veneza de Arquitectura. Na medida em que a distância deixa de se cumprir, aos nossos olhos restará o prazer da volumetria, das cores e dos sons das coisas que nos encerram, que nos estão à mão de semear e das quais seremos reféns. O "baile" de máscaras do teu texto, preludia o final de um tempo em que ainda se corria a meia-maratona na Ponte Vasco da Gama e/ou a minha peregrinação diária à Padaria do senhor Antunes.

Abraço.

Lady disse...

Que remate final! Fantastico!
Boa escolha/selecção!!!

Bjinhos e uma boa semana!

mfc disse...

A irrealidade real, ou o paradoxo feito um belo texto.

BIA disse...

Os amigos dos meus amigos...são sempre bem vindos!

Andei por aqui a tentar vislumbrar a pessoa que me visitou...

Por aqui me deixei andar um pouco...

Voltarei!

Abraço terno


BIA

Nilson Barcelli disse...

Pelo que me apercebi, o texto que poublicaste não é integralmente do Italo Calvino.
Pareceu-me que os parágrafos numerados (1, 2 e 3 ) são teus.
Em qualquer caso este teu "Num lugar irreal" é mais real do que à primeira vista se pode pensar. Ou, então, a realidade é mais irreal do que se pensa...
Excelente post, gostei.
Abraço.

Carla disse...

Calvino a fazer-nos pensar!
belo post o teu
beijos

Pedro disse...

A imagem é muito simbólica, gostei!

Texto muito filosófico!

as velas ardem ate ao fim disse...

é realmente surreal alguns crimes urbanisticos que neste pais se prtaicam

o texto não conhecia mas gostei.

um abraço

pin gente disse...

pergunto-me o que diria darwin de toda esta fauna!
pareceu-me tudo muito real...

um abraço, sempre

luísa

Maria Laura disse...

Parece-me que esse lugar talvez não seja tão irreal assim... Já acreditamos em tudo, np que respeita a urbanismo. Deliciosa está a forma como o assunto foi trtado.

:.tossan® disse...

Estou gostando muito do seu espaço e vou continuar a ler este belo blog. Abraço