sábado, 20 de setembro de 2008

Nunca se deve voltar onde se foi feliz



1.
A nossa casa do Douro, em Cinfães, está á venda.

Argumento de venda: estar construída sobre dois socalcos; não haver um único obstáculo que se interponha entre a casa, o rio e a margem oposta; finalmente, ser de fácil acesso.

No primeiro socalco, num amplo espaço arrelvado com piscina, abre-se o logradouro com capacidade para dois carros e uma falsa edificação pergolada para a piscina e para vale. Uma área assim, tão extensamente envidraçada, garante repouso, protecção dos ventos e a paisagem única do vale e das encostas vinhateiras.
No socalco mais abaixo, abre-se a casa com a sua ordenação tradicional onde prepondera uma ampla sala com lareira e uma extensa varanda sob a pérgola.

2.
Já não me lembro se foi em Lamego ou em Resende, não interessa, que passámos por uma take away e comprámos comida para o nosso jantareco.
Estávamos realmente cansados.
A viagem fora demorada. Apanhámos imenso trânsito.
Um duche bem quente não amolece.
Não nos tendo excedido no vinho, só o cansaço justificaria a lassidão física.
Acendi muitas velas amarelas e laranja, a minha paleta favorita, e fui elogiada. O Luis achou o ambiente admirável.
Conversámos imenso.
Para não atrasar o amanhecer, calámo-nos.
Não fomos lá para baixo, para o quarto. Trouxe um edredão, abrimos o sofá e, cingidos, tentámos adormecer.
Penámos por encontrar conforto e apaziguamento, tamanha era a euforia!

3.
De manhã, levantei-me com fome. Fui á cozinha e preparei dois batidos. Sei lá quantos crackers comemos -- Dois, três, talvez quatro. Tantos! -- Adormecemos novamente.
É claro que já não foi um sono profundo e solto. Lembro-me, sim, de sentir-me afagada pelo Luís e experimentar uma volúpia indescritível. Fizemos amor, naturalmente. Mas eu não me lembrei que tinha temporizado a abertura do cortinado para aquela hora. Estaria estabelecida por defeito? O que é facto é que ela ocorreu quando exultávamos de prazer.
O Luís ainda fez um brevíssimo staccato.
Controlou-se.
Salvámo-nos!
Cinco minutos depois, ainda não sabia o que dizer-lhe.
Paciente, aguardou mais uns instantes.
Depois disse-me «Até agora, malgré cela, tudo tem estado perfeito.» Beijei-o. «Um amigo meu tem um barco excelente para fins-de-semana. Gostarias de experimentar, Ana? -- Claro!» Fez uma pausa «Já nos imaginaste no alto mar, a dar azo aos nossos caprichos, a beijarmo-nos, a fazer amor... -- Seria óptimo, Luís!» Ele «O que farias tu, Ana, se de repente, o canto suave, melodioso, inebriante e irresistível de uma sereia, fazendo-se ouvir, lá das profundezas, me enlouquecesse ao ponto de me fazer atirar borda fora, ao seu encontro? -- Nada. Desligava a programação da abertura do cortinado e atirava ao mar o Ipod que atarraxaste ao ouvido e que já me está a enervar!»

21 comentários:

Lyra disse...

Se o Luís tinha alguma dúvida em relação aos sentimentos da Ana em relação a ele, depois desta inteligente resposta, as duvidas (com toda a certeza) desvaneceram-se!

Um excelente fim de semana para ti.
Beijinhos e até breve.

;O)

OUTONO disse...

"Nunca se deve voltar aonde já se foi feliz"

Eu já voltei...e voltei a ser feliz.

Mas...foi apenas o início visual desta (mais uma ) brilhante narrativa, onde enquadras (sabiamente) mistérios para exercício dos leitores. Aliás, deixa-me dizê-lo, o escritor está ao "serviço" dos leitores...há quem assim não pense...não é o meu caso.

Depois, a imagem que destaca a edição...é um apelo à arte, e um sorriso ao gosto.

Gostei. Um abraço.

mfc disse...

O pior de tudo é sempre o retorno à realidade.

Justine disse...

Ao correr da imaginação ( ou da memória?), uma história bm narrada.

Quanto ao título, acho que não é bem assim...

Lady disse...

"Nunca se deve voltar aonde já se foi feliz" ...
Creio que isso depende muitas das circunstâncias... e cada caso é um caso... por vezes semelhantes a tantos outros, e no entanto tão únicos...

Mas está excelente a narrativa, nesse olhar rápido, onde se retrata aspectos fucrais... e onde recaídas, nem sempre são sinónimo de boas notícias... nem a solução e/ou saída...
Quando o mal já está feito e o cura não há, que remédio!

Gostei, jinhos

Teresa Durães disse...

O acordar para a realidade é sempre abrupto

Graça Pires disse...

Uma bela narrativa num estilo que muito aprecio.
Beijos.

Maria Laura disse...

Quanto ao título, não sei. Podemos ser felizes de outra forma. Nunca será igual, essa é que é a questão.
Agora a narrativa está deliciosa e inteligente. Estas novas tecnoligias só estragam o romance, está visto...

luis lourenço disse...

Viva JPD!
Fazes uma narrativa excelente...acredito no eterno retorno, mas sempre com novos acordes e variações...pois a felicidade no pico é sempre única em cada cenário...
Estou inteiramente de acordo com o título do teu post...
e afinal os dois pombinhos foram felizes...para sempre? A casa do Douro é outro negócio.

abraços

isabel mendes ferreira disse...

é tb a minha "versão"....

o reduto da felicidade deve ser a pilastra do encanto....:)




beijo.

Carla disse...

se a lareira continuar e os sentimentos não tiverem desaparecido...o regresso pode ser sempre pensado.
Gostei de me envolver nas tua spalavras
beijos

Rui disse...

Fosse eu corajoso e ia ao itunes procurar pelo canto de sereias - perdição dos homens em mp3. Benditos tempos modernos.
Acho que vou ao itunes procurar canto de baleias. Não é a mesma coisa, mas tem também frescura marinha.

Pedro disse...

Desde o título que me fascinou.

xDD Eu ri-me com o texto!

Nilson Barcelli disse...

Era capaz de comprar a casa, mas por causa da cortina já me passou a euforia... eheheh...
Tenho dúvidas acerca do título do post, mas sempre será mais seguro dizer "Nunca se deve voltar aonde já se foi infeliz". Mas neste caso também tenho dúvidas... o melhor será perguntar a um sociólogo ou coisa que o valha...
Excelente texto, como sempre.
Abraço.

Unknown disse...

O título provocou-me tristeza... Espero que esteja errado, porque é sempre muito bom voltar onde se foi feliz.

Beijinhos

Clara

Alberto Oliveira disse...

Caro José:

Um belo texto a ilustrar que "aquela" felicidade dificilmente se repete, talvez daí o "lugar-onde" associado ao título.

Não é por acaso que exclamamos por exemplo: "Ah! que belas férias que foram aquelas em X!" Podemos lá voltar mil vezes que os pormenores que foram a soma de tão magnífico tempo, jamais se voltarão a verificar.

abraço.

Fernanda disse...

Em complemento ao que escrevi algures no meu blogue,... acrescenta-se mais um pormenor...:) e que é, a simplicidade de apenas se ESTAR, com quem nos dá a sentir a..."insustentável leveza do ser"...:)))
Gostei de ler.

Uma boa semana

Maria Clarinda disse...

Olá! Quebrei o meu silêncio e voltei. Assim resolvi vir passear pelo teu blog e como sempre foram belos os momentos que aqui passei. Jhs

Azul disse...

Olá. Vim aqui á procura de qualquer coisa, não sabendo ao certo o que poderia esperar encontrar. De caminho pelos dois ultimos pot's, descobri que era um abrigo textual como este o que pretendia. Gostei muitíssimo do que li aqui, e da citação abaixo. Acho que estão perfeitas! Obrigada pelo momento traquilzador que me proporcionou. Um abraço. Até breve. Azul.

pin gente disse...

Eu bem precisava assim de um descanso...

Vanda disse...

O título lembra-me a nostalgia das memórias, que invadem sem pedir licença, o olhar de quem recorda...


A narrativa, contudo, plena de vida e humor, afasta qualquer nostalgia...ai as sereias ainda a povoarem os pensamentos dos homens! :)