quinta-feira, 11 de setembro de 2008

SILKY (Conclusão)


5.
Chovia copiosamente quando amanheceu.
O Paulo levantou-se. Correu os cortinados. Uma ténue luminosidade pairou.
Na praça, de costas para a sua janela, uma jovem de anorac escarlate, segurando firmemente pela trela um cão de médio porte, recebia esclarecimentos de um homem.

O cão encharcava.
Era o
Silky. Não havia dúvida. E ela?
Enquanto se vestia à pressa, a jovem era recebida pela D. Eunice e o Sérgio entrava na pastelaria do Lencastre.
O Paulo correu escada abaixo, a galgar degraus, em vão.

O cão da jovem ensaiou uma corridinha para a porta. Não chegou a ladrar.

Quando abriu a porta da rua para gritar
«Isabel, vem para dentro. Um aguaceiro destes faz mal!» a praça já estava vazia.

Profundamente desiludido, regressou ao apartamento. Durante imenso tempo, não saiu da janela. Não circulou vivalma na praça. O desespero aumentava. Telefonou ao Lencastre:
«Sim! Olá Paulo... Nem aqui nem na praça vi mulher com cão... Queres falar com o Sérgio? Se a vir, ligar-te-ei. Fica descansado.» Antes de desligar «Vem cá abaixo tomar um café, aparece!»
A chuva abrandou. Sentiu algum alento. As pessoas começaram a cruzar a praça.
Ao contrário do habitual, D. Eunice não foi à pastelaria do Lencastre. Saiu e acompanhou a jovem até à estação de comboios.
Caminhavam pelo passeio quando se lhes dirigiu um jovem a promover máquinas fotográficas.
«As senhoras podem tirar uma dúzia de fotografias. Trata-se de um modelo descartável. A revelação é grátis.» Entregou uma amostra a cada uma. «Peço apenas que coloquem a vossa prenda com a nossa marca virada para mim enquanto fotografo as felizes contempladas. "Cheese!" Já está. Para minha segurança, deixem-me repetir. "Chees...!" Obrigado!» Continuaram pelo passeio, sem atravessarem a praça, fora do alcance visual de Paulo.

D. Eunice regressou a casa por volta da uma da tarde. Vinha eufórica. Acabara de alugar os dois apartamentos do 1º andar à jovem professora.
Já nem chovia.

Estranhamente, havia água no chão. Subiu a primeiro andar e os seus receios confirmaram-se. Abundante, a água vinha do sótão, de casa do Paulo. Correu à pastelaria «Lencastre, vem depressa. Ajuda-me. Tenho uma inundação no prédio... Ou pior!»
Tocaram à campainha, chamaram, bateram fortemente na porta, tentaram arrombá-la. Nada. Ninguém respondia. A água corria continuamente.
A D. Eunice foi a casa buscar a chave-mestra e os piores receios confirmaram-se: o Paulo jazia na banheira. Cortara os pulsos. No chão, junto ao x-acto encontrava-se, amarfanhada, uma fotografia de polaroid da jovem de anorac escarlate, segurando firmemente pela trela um cão de médio porte, a receber esclarecimentos de um homem. Na parede da sala, ao lado da foto da Isabel, várias outras, mal se distinguindo daquela que fora abandonada no chão da casa de banho. Tratar-se-ia de gémeas? -- Nem pensar!


6.
Resgatado o cadáver, a polícia fez as recolhas preliminares e selou apartamento. A autópsia confirmaria o suicídio.


7.

Reveladas as duas fotografias tiradas na praça, a D. Eunice só aparecia na primeira. Na segunda, muito nítida, a jovem tinha um lenço de seda escarlate, displicentemente colocado à volta do pescoço e envergava um anorac azul. Vestia calças de ganga e calçava ténis de marca.

O louro do cabelo era menos acentuado e o corte idêntico ao da Isabel.


A senhora de idade avançada não se lembrava do lenço de seda. Não podia lembrar-se. Vira-a de costas. Decidida «Foi essa menina que vi, sim. Agora me lembro desse anorac azul. Trazia-o atado a cintura. Não tenho qualquer dúvida. Era ela. Caminhava como se estivesse a passear. A cor do cabelo... Acho que era escura. Assim alourada, não!»
O homem que lhe deu informações na praça, sob o aguaceiro «Do lenço de seda, não me lembro. O zip estava corrido até ao pescoço. O cabelo era escuro e curto. O anorac era escarlate. Mas... Deixe ver melhor... Ah! A gola é que era azul, por dentro.»
O Artur estarreceu quando lhe foi mostrada a fotografia.
«Foi essa mulher que desencadeou esta tragédia... É ela. Reconheço-a. Vinha da falésia com o anorac atado à cintura, sim. Este corte de cabelo é o mesmo. Ela pintou o cabelo, não foi? O que é que conseguiram saber do passado dela?»
Recolhidos os testemunhos, o polícia foi lacónico
«A esta hora, essa senhora estará a ser presa.»


8.

A Isabel, o Paulo e a Rita ensinaram na mesma escola, no regime de triénios.
Não é possível saber se a Isabel chegou a ter conhecimento do envolvimento da Rita e do Paulo ou, fingindo desconhecer, para não escandalizar, uma vez que estavam no terceiro ano de ensino naquela escola, a Rita no segundo, aguardou que a mudança resolvesse os problemas do triângulo.
A Rita soube que eles partiram e reagiu. Fez ameaças. Chantageou o Paulo. Escreveu cartas anónimas à Isabel.


9.

Quando soube que eles se instalaram na casa da D. Eunice e davam aulas na Vila, contratou um detective particular para vigiar a rotina do casal. Pagou ma fortuna e recebeu um relatório cheio de imprecisões, de invenções.
Ao alugar os dois apartamentos do 1º andar excluía a possibilidade de alguém se interpor entre ela e o Paulo, no sótão. As vagas abertas naquela escola eram preenchidas com dificuldade. A apresentação da sua candidatura teria muitas chances de ser bem sucedida. Havia, portanto, que fazer aproximações sucessivas, conhecer as amizades do casal, as suas rotinas. Ser discreta. Tê-lo-á sido meticulosamente.
A Isabel adorava passar uma tarde à beira mar, ou numa falésia, a ler e a ouvir música. A Rita sabia disso.
O que foi feito era o que havia para fazer.
Aproximar-se da Isabel. O Silky já a conhecia, reagiria afavelmente. Um simples empurrão, primeiro da Isabel, a seguir do cão, seria complicado desvendar. Deixaria o Paulo devastado, é certo, mas o tempo e a casual proximidade resolveriam o desamparo que viesse a experimentar. Consumadas as quedas, retirar-se-ia.
Para empurrar a Isabel terá arranjado um pretexto para prender, pela trela, o Silky, ao guarda-lamas do carro. Ela teria de abandonar a falésia antes do cão, reagindo, chegar a alguém. Ela saiu.
O cão conseguiu libertar-se e pedir socorro; a maré não chegou a subir o suficiente para ocultar o cadáver; o grau de prontidão do INEM e dos bombeiros ao pedido de socorro do Paulo e do Sérgio foi exemplar.
Mais tarde, para poder reaproximar-se e evitar ser reconhecida, havia que fazer desaparecer o animal. O que foi fácil. Porém, regressar com um cão simulando um duplo da Isabel e do Silky, ousou em demasia. Ou acharia que devia proteger-se? -- Não se sabe.
Ao instalar-se no sótão, conhecendo-a, o Paulo nunca terá tido dúvidas quanto ao seu regresso. Ela voltou, estoirando com o programa de recuperação psicológica dele.
A Rita terá encontrado uma maneira de o pressionar.
Uma quantidade enorme de objectos e indícios bem como os computadores pessoais de ambos estão sob reserva para averiguações.
Sabe-se que os sintomas de loucura da Rita já transpuseram a prisão onde preventivamente foi instalada. Errou na avaliação de resistência emocional do Paulo. O suicídio dele tê-la-á surpreendido.
Nestas condições resta-lhe o quê, suicidar-se também, lamentar-se por ter lutado por um homem que não aguentou a pressão da separação depois de lhe ter prometido sabe-se lá quê, alhear-se e cumprir a pena, como uma zombi, ou ser inexoravelmente um caso psiquiátrico?
Sabe-se que numa das sessões de interrogatório entrou em histeria quando a polícia fez entrar o Silky -- tê-lo-á suposto morto? -- arrastando uma sobra do guarda-lama pela trela e um lenço de seda ao pescoço, igual ao que ela usou na falésia.

17 comentários:

Graça Pires disse...

Dramático mas excelente.
Um beijo e bom fim de semana.

isabel mendes ferreira disse...

quando assim "escorremos"...

a leitura fica "alta".



(talento inquestionável de "contar").




abraço.


re.encantado.

Alberto Oliveira disse...

Caro José:

Vê-se que tempo de férias foi óptimo para recarregar baterias e alimentar-te a criatividade como demonstra este policial em dois tempos. O primeiro para desnortear os leitores, o segundo para confirmar que o crime só compensa se se trocar o i pelo e: creme dos pastéis de nata de Belém, que são um crime deixá-los nos expositores das pastelarias...

abraço.

Justine disse...

O ambiente fantástico e algo irreal está muito bem criado, o desfecho traz-nos de volta a realidade com os dramas habituais, mas também nos tranquiliza um pouco: afinal, tratava-se apenas de gente de carne e osso, com defeitos e problemas e tudo...
Soube bem ler-te!

Lady disse...

Mhmmm... um crime passional envolvende uma trilogia...
Gostei...
Mas como já é habitual, assitir a esse género de ficção policial, a minha imaginção voou para além disso, no qual a minha suspeita recaía no Silky! :)

Jinhos

Antunes Ferreira disse...

LISBOA - PORTUGAL

Olá JêDêPê!

Quanto mais conheço os homens, mais gosto dos cães. Fácil citação, de tão repetida. Mas, cada vez mais verdadeira e actual...

Cheguei a este blogue através de outros que costumo visitar e neles postar comentários. Cheguei, vi e… gostei. Está bem feito, está comunicativo, está agradável, está bonito – e está bem escrito. Esta é uma deformação profissional de um jornalista e dizem que escritor a caminho dos 67…, mas que continua bem-disposto, alegre, piadista, gozão, e – vivo. O meu primeiro nome é Henrique – e gosto dele. Podes tratar-me assim, que eu agradeço. E, já agora, sou do Partido Socialista e fui católico – mas… curei-me…

Só uma anotaçãozinha: Durante 16 anos trabalhei no Diário de Notícias, o mais importante de Portugal, onde cheguei a Chefe da Redacção – sem motivo justificativo… pelo menos que eu desse com isso… E acabo de publicar – vejam lá para o que me deu a «provecta» idade… - o me(a)u primeiro livro de ficção «Morte na Picada», contos da guerra colonial em Angola (1966/68) em que, bem contra vontade, infelizmente participei como oficial miliciano.

Muito prazer me darás se quiseres visitar o meu blogue e nele deixar comentários. E enviar-me colaboração. Basta um imeile / imilio (criações minhas e preciosas…) e já está. E se o quiseres divulgar a Amiga(o)s, ainda melhor. Tanto o blogue, como o imeile, tá? Muito obrigado

www.travessadoferreira.blogspot.com
ferreihenrique@gmail.com

Estou a implementar e desenvolver o projecto que tenho para o meu www.travessadoferreira.blogspot.com e que é conferir ao meu/vosso/NOSSO blogue a característica de PONTO DE ENCONTRO entre os Países fraternalmente ligados – Portugal e Brasil. E outros PALOP e etc…
Se me enviares o teu IMEILE, poderei enviar-te «coisas» que ache interessantes. Se, porém, não as quiseres, diz-me que eu paro logo. Sou muito bem-mandado (a minha mulher que o diga…) e muito obediente (cf. parênteses anterior). Abrações e queijinhos, convenientemente repartidos e distribuídos

– Desculpa por este comentário ser tão comprido e chato. Como a espada do D. Afonso Henriques…
- E, agora, uma publicidadezita, de que te peço desculpa antecipadamente. Já conheces o me(a)u «Morte na Picada» que acima menciono? Há quem diga que é muito bom. E até que é o melhor que se escreveu em Portugal sobre o tema. Dizem… Obviamente que não sou eu a dizê-lo… Só faltava… E também há quem tenha escrito que é SANGUE & SEXO… Malandrecos… Pelo sim, pelo não… compra-o. Não é um pedido, não é uma sugestão, não é um conselho. É uma ordem!.... hahahahahahahahahaha…
Depois de o leres, se, por singular acaso, tiveres gostado dele, terás de comprar muitíssimos mais exemplares. São excelentes prendas de aniversários, casamentos, divórcios, baptizados, e datas como Natais, Carnavais, Anos Novos, Páscoas, Pentecostes, vinte e cincos de Abris, cincos de Outubro, dezes de Junhos. Até para funerais. Oferecer o «Morte» na morte fica bem em qualquer velório que se preze. E, além disso, recomenda-o, publicita-o, propagandeia-o, impinge-o aos Amigos, conhecidos, desconhecidos & outros, SARL. Os euros estão tão raros e... caros...

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A editora da obra é a Via Occidentalis (occidentalis@netcabo.pt) cujo site é www.via-occidentalis.blogs.sapo.pt. Neste blogue podem ser consultados mais dados sobre o livro, cujo preço de capa é € 14,70. ATENÇÃO: Pode ser comprado pela Internet.

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NOTA IMPORTANTE: Este texto de apreciação e informação é similar em todos os casos em que o utilizo. Em muitos, com ligeiras alterações que o personalizam. Digo isto, para quem não surjam dúvidas ou suspeitas sobre a repetição em diferentes blogues. E para que ninguém se sinta ludibriado – ou ofendido… Há feitios que… Mas, sublinho, apenas o uso quando o entendo, isto é, quando gosto mesmo dos que visito. Nos outros onde também vou, se não gosto, saio sem comentários. Há muitos mais. Aqui na terrinha diz-se que «se não gostas, põe na beirinha do prato…»

pin gente disse...

fantástico meu caro. adorei!
um policial e pêras... uma boa séria para tv.
parabéns

abraço
luísa

Pedro disse...

A conclusão!

Um policial que segui com atenção... E gostei do final, conclusivo mas com aquele toque que dás para subjectividade.
Acho que é impossível uma histórias destas nunca parecer um pouco dramática... Eu gosto.

Um grande abraço

OUTONO disse...

Meu caro

Não me enganei. O primeiro "momento", foi apelativo, mas ...duvidoso, o segundo "momento" digno de um final saído de um imaginário ...só teu!

Gostei desta tua faceta de argumentista e narrador ímpar.

Um abraço.

Maria Laura disse...

Excelente, o conto que li desde o princípio. O teu talento para este tipo de escrita é inquestionável.

Teresa Durães disse...

uma história fascinante!

Carla disse...

perfeito o desenrolar deste drama em forma de filme de suspense. Prendeu-me da primeira à útima palavra, embroa seja assustador aquilo que a loucura humana pode fazer!
beijos

luis lourenço disse...

Viva JPD!
O enredo digno de triller é fantástico no seu todo...e está lindamente contado com todos os ingredientes do supense e da complexidade psicológica...as duas partes enaixam perfeitamente...Mas tive de ir ao início...o que só me fez bem como exercício de concentração intelectual...

abraço

mfc disse...

O lenço vermelho nunca poderia ser visto pelo Silky... mas eu gostei de me aperceber dele!

vida de vidro disse...

Excelente a trama e a narrativa. Gosto desta tua versão policial! **

Nilson Barcelli disse...

Se, apenas com a 1ª parte, já não tinha dúvidas que este teu conto era excelente, agora tenho a certeza: é um magnífico conto.
Parabéns.

Abraço.

Vanda disse...

Jota, o conto desenrolou-se de forma excelente!

Dá um pequeno filme!


Uma teia de situações muito bem desenhada!