sexta-feira, 15 de agosto de 2008

BOLAS DE SABÃO


A.

«Ensinas-me a lançar bolas de sabão, David?» Sobressaltei-me. Disfarcei. Disse-lhe «Nem penses, Diogo!»

Somos quatro irmãos: a Denise é a mais velha. O Diogo é o nosso mano mais novo. Tem menos oito anos do que eu e menos três e meio do que o Daniel.
Ainda hoje tento e não consigo perceber qual é a relação entre o nascimento do Diogo, a tarde em que choveu enquanto eu lançava bolas de sabão, e o aparecimento de uma cegonha no nosso jardim.

Correndo o risco de ser "o puto que chateia", falei com a minha mãe sobre o assunto e jurei para nunca mais. «Pedi-te que tomasses conta do mano, não pedi, David? Os resultados estão à vista! Preocupaste-te apenas em lançar bolas de sabão. O Danielzinho desapareceu. Eu ia morrendo, percebes? Fazes ideia o que me custou impedir o teu pai de te sovar até à morte? Ora, David! Há mais alguma coisa que queiras saber da mãe? Mais nada, pois não! -- Óptimo! -- A mãe vai repousar. Sinto-me tão cansada, filho!» Eu fui para debaixo da pérgola. Sentei-me na cadeira de baloiço dela. Ali estive sei lá quanto tempo a olhar para a relva mal aparada onde tanto brinquei. O que me diverti. Aqui na zona nunca houve quem enchesse e lançasse bolas como eu. Bem, o meu pai era imbatível. Mas perdeu a primazia. As viagens de longo curso impedem-no de competir. Não renovará.

B.

Sábado. Ao almoço combinou-se que eu ficaria em casa, cuidaria do Daniel enquanto a mãe e a Denise fossem ao Centro Comercial. Nem demorariam duas horas sequer. «Não te afastes do mano, David. Nem um minuto, filho!» «Não será melhor pedir à vizinha que acompanhe os manos, venha de vez em quando saber se estão bem, mãe?» Disse a Denise. Peremptório «Vai descansada, mãe!»

2.

Naquela tarde eu estava em grande forma. Cada novo ensaio acentuava a perfeição das bolas. Uma vez no ar o que elas duravam. Não rebentavam facilmente. Cheguei a lançar bolas siamesas. Pena foi que ninguém estivesse a assistir. Estive inexcedível!
Quando precisei de renovar o sabão líquido, passei pelo carrinho de bebé onde estava o Daniel e disse-lhe, apesar de ele estar a dormir «O mano já volta, Dani. Não chores!»
Enquanto fui à casa de banho encher o depósito da bomba das bolas de sabão a vizinha apercebeu-se que começara a chover. Espreitou o nosso jardim e estranhou ver o carrinho abandonado. Levou-o para debaixo da pérgola enquanto eu saía, em sentido oposto, pela porta da cozinha. «Só faltava a merda da chuva!» murmurei completamente esquecido do «Dani», do carrinho de bebé, de tudo, menos das bolas de sabão.
Chamou. Ninguém respondeu. «Valha-me deus!» Deixou post-it na porta do frigorífico «O Daniel está comigo. Dulce.»
Eu rectifiquei a quantidade de água no recipiente e retomei lançamento de bolas de sabão. Inexplicavelmente, elas era menos exuberantes, duravam menos, vogavam penosamente, já nem fui capaz de fazer uma única série de siamesas. Deixara de chover. Como explicar tão fracos resultados? Subitamente, lembrei-me do «Dani». O carrinho desaparecera. Corri para casa. Nada! Voltei ao jardim. Ninguém! Do carrinho nem réstia de sinal. No ar vogava uma bola de sabão enorme. Estranha. Diferente de todas as que soprara. Não era cristalina. De conteúdo invisível. Fiquei tão confuso, atrapalhado, imobilizado, nem conseguia chorar. Nada! Nem me ocorreu pedir ajuda à vizinha Dulce. Mas ela arranjou maneira de falar com a minha mãe «Assim que puderes vem para casa, Dália. Encontrei o teu bebé à chuva e não faço ideia onde pára o David!»

3.

Fui sovado e posto de castigo no meu quarto, no primeiro andar da casa. Fiquei proibido de lançar bolas de sabão até o meu pai chegar -- Uma eternidade! Eu não fazia a mínima ideia de quando ele partia, quanto mais quando chegava! -- Uma coisa era certa, mal chegasse eu tinha garantida nova sova.
Apenas saía do quarto para tomar as refeições.
Uma manhã, antes do almoço, reparei que a bola de sabão opaca permanecia sobre a nossa casa. Porque seria? E se eu lançasse bolas, vogando estas, ela acompanhá-las-ia? Teria de obter autorização da minha mãe. «NÃO! Nem penses! -- O teu pai chega amanhã. Pede-lhe! -- Até lá, estás proibido de sair do quarto.» «Posso, ao menos, fazer modelação de barro?» Zangadíssima «Ai de ti que sujes alguma coisa!»
O meu pai chegou. Ralhou. Dobrou a duração do castigo. Eu resignei-me a fazer carros de barro e a colocá-los no parapeito da janela a secar. Fossem verdadeiros e seria ao volante do mais veloz que eu encetaria a fuga. Então reparei que a bola de sabão desaparecera. Na chaminé da nossa casa, uma jovem cegonha iniciara a construção do ninho. Para fixar os primeiros pauzinhos à chaminé serviu-se do barro das modelações. Tendo acabado de cumprir o castigo, reparei que ninho estava concluído. Muito mais tarde, um ovo era chocado.

Agora, pergunto-me «O que terá tudo isto a ver com a gravidez da minha mãe e o nascimento do Diogo?»
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Ilustração: Gentileza Google


13 comentários:

pin gente disse...

eu não faço ideia o que terá a ver!
mas sei que gostei da história e que tive pena do david...
também eu gosto de fazer bolas de sabão!
abraço

Justine disse...

Adorei esta história de realismo mágico! Lembrei-me tanto das tardes encantadas a ler Ray Bradbury:
Obrigada pela oferta:))

OUTONO disse...

Tem a ver com um texto mágico de interesses, apelativo de emoções e, o resto...a pergunta, só o mentor sabe...talvez numa próxima desvende...talvez?

Brilhante. Um abraço.

Pedro disse...

Mágico... Mas ao mesmo tempo uma história completamente real. Um texto para mim fresco, como uma bolha de sabão...

lélé disse...

É uma hstória super bem contada e encantadora, mesmo!... Mas, livrai-nos senhor de pais assim!
Os adultos, tantas vezes se esquecem das perspectivas que tinham, quando eram crianças!...
E, porque as crianças estão a aprender o mundo em que vivemos e onde elas viverão depois de adultas, não concordo minimamente em contar-lhes mentiras, como a da cegonha e muito menos em deixar uma criança a tomar conta de outra.
Mas a história está linda!

Graça Pires disse...

Adorei o David com as suas bolas de sabão cheias de magia...
Um abraço.

Maria Laura disse...

A magia e os traumatismos da infância. Que difícil é para os adultos entender o mundo das crianças...

Maria Laura disse...

A magia e os traumatismos da infância. Que difícil é para os adultos entender o mundo das crianças...

vida de vidro disse...

Uma história muito bem construida e com tanta realidade nos sentimentos... Estranhas e complexas são sempre as relações familiares. Quando somos crianças, também! **

mfc disse...

Sauidades das bolas de sabão!
Como sabia bem brincar com elas!

Lyra disse...

Voltei de férias e vim feliz!
Há sol dentro de mim
Respiro todas as cores
Há Verão, há flores
Como é bom sentirmo-nos assim!

Um grande beijinho e até breve.

;O)

Vanda disse...

Pois, não sei :)


Mas que tudo foi muito bem construido à volta de uma bola de sabão, foi...

E quem nunca se maravilhou com as bolas de sabão?

:)

luis lourenço disse...

Viva JPD!

a felicidade das bolas de sabão na respiração de uma criança convence.

abraços