terça-feira, 3 de junho de 2008

SARA

«(...)
Só o pássaro vive para o voo.
Quando pousa é igual ao homem que se senta
Para pensar.
(...) (*)


Cheguei à Gare do Oriente com meia hora de antecedência. «Esperaste muito, João?» «Não. Nada! A CP a cumprir horários... É digno de registo!» Era visível o cansaço «Como correu a semana, Sara?» «Extenuante! Pensei poder repousar na viagem: puro engano! Um grupo de parvos tornou-se insuportável. Pareciam miúdos a viajar pela primeira vez. Incomodaram toda a gente.»

Cancelámos a saída de sábado à noite. Os amigos compreenderiam. Sem ânimo não vale a pena. Desligámos os telemóveis e desejámos ardentemente que ninguém nos batesse à porta.
O jantar desta noite estava combinado desde quarta. Não cedi. A Sara queria comer qualquer coisa e apenas isso. A carne e os frutos para o fondue estavam preparados. Acho a combinação excelente. Jantaríamos. Aliás, a Sara é apreciadora parcimoniosa de vinho. Eu ansiava para que aprovasse a escolha que fizera.





A Sara quando está excessivamente preocupada nunca vai directa ao assunto. Queixa-se, faz o balanço de tarefas, das coisas práticas como, por exemplo, se a Matilde passou cá por casa para manter a higiene e a limpeza; revê o correio que lhe foi endereçado e aguarda que eu lhe fale do meu e que eventualmente a envolva. «Estavas em casa quando a Matilde veio?» «Não. Fiquei na noite da tua partida. Nas seguintes fui para minha casa. O pó acumula-se, a casa precisa de arejar. Se queres saber, nem deixou qualquer nota a pedir o que quer que fosse.» «Se um dia lhe acontecer alguma coisa, nunca mais encontraremos pessoa como ela. Pede-lhe para também limpar a tua casa, João!» Contida. Eis o primeiro sinal de ansiedade.
Não conservei a minha casa por precaução.
Não.
A Sara pediu-me que, de inicio, vivessemos em casa dela.
Eu aceitei.
A relação tomaria rumo e, consolidada, um projecto de vida seria acalentado num outro espaço, com as devidas ambições, com escala, já apaziguadas as emoções iniciais.

Ter de ir trabalhar para Porto foi uma imposição profissional. Constrangedora. Abalou-nos imenso. A alternativa era o desemprego com uma indemnização ridícula.
Um amigo meu, a trabalhar na auditoria, queixava-se que nos dois/três meses que antecedem o fecho de contas trimestral das empresas cotadas em bolsa há sempre tanto que fazer e é tão absorvente que chegava a ser penoso o tempo diminuto que lhe restava para estar com a namorada. Ela não se resignava. A solução que encontraram foi a do casamento. Pelo menos à noite estariam juntos.

«Da imobiliária chegou alguma coisa?» Tinha chegado uma carta cautelosamente redigida. «Relata ter sido recebida a lista de alterações. Um contacto telefónico seria suficiente para marcação de uma reunião, para esclarecimentos e aprovação do orçamento.» «Achas que vai sobrecarregar o preço da casa?» «Não faço ideia, Sara. Podemos pedir-lhes a proposta e discuti-la com o Sérgio. Ele está no meio. Ajudar-nos-á. Estás disponível quando?»
De certeza que havia um problema. A Sara ainda não encontrara a maneira de expô-lo. A conversa ainda não lhe proporcionara a deixa.
«Achas que um ano é suficiente para resolvermos isto tudo?» «O quê, as alterações, o empréstimo...» Ansiosa «Sim!... A escritura, a ocupação da casa... Os juros deixarão de subir até lá? No teu emprego... Como é que as coisas vão?» Pousou o talher. Baixou a cara. Levou o guardanapo aos olhos e afundou-se. Estava prestes a explodir. Fiz-lhe uma festa na cara. Abracei-a. Suavemente, forcei-a a erguer queixo, a olhar para mim «O que se passa, Sara?» Chorava. Dali a convulsionar seria um instante. «Se não falares comigo, fá-lo-ás com quem? Vamos, o que se passa na tua empresa, contigo...» Revoltada «A empresa prepara-se para deslocalizar para a Polónia. Pediram voluntários para dar formação. Sabes o que isso significa? Ou te ofereces e vais e será uma sorte se te garantirem o teu posto de trabalho, mas lá, evidentemente; ou recusas e perdes tudo, no Porto, em Lisboa... No olho da rua! Estás a perceber o meu desespero: o nosso projecto está comprometido!»
Apenas me ocorreu acrescentar que a emigração é assunto sério. Exige preparação. Tenacidade. Remotamente, nunca afastara essa possibilidade. «Numa situação de emprego seguro, é fácil falar assim. Se fosses confrontado com alternativas improváveis ou remotas, reagirias como? Achas que eu, se for para o mercado, encontro trabalho. Então o que me resta: o fundo de desemprego, vivermos do teu ordenado ou a emigração. Ficas à minha espera, acompanhas-me, e se não houver trabalho para os dois?»

Um amigo de um colega conhece uma pessoa com cinquenta anos de idade e trinta de serviço que foi chamada aos recursos humanos da empresa para simulação de pré-reforma "Apenas uma simulaçãozinha!" No dia seguinte a leitura do cartão de assiduidade já estava desactivada e o acesso à área de trabalho não reconhecia o código.




São dez horas da manhã. Estamos na Portela. Já fizemos o check-in; o embarque não tarda. Varsóvia aguarda-nos. A duração da estadia é de um ano com duas revalidações possíveis. Com a globalização, o mundo é uma aldeia e nós nem sempre conhecemos os nossos vizinhos, costuma ser dito num dos programas da SICNotícias.

______________________
(*)
«POESIA» Daniel Faria
Ed. QUASI

Ilustração: Gentileza Google

14 comentários:

mdsol disse...

retratos da vida de agora!
:)

lélé disse...

É uma história lindíssima, baseada em factos verídicos e extremamente bem escrita (mas quem sou eu para opinar?!)...

isabel mendes ferreira disse...

Não não é verdade.

aqui tudo tem rumo certo cadência sentido principio meio e fim sendo que este nunca é final, antes promessa de que em outros dias tudo recomeça.

na sábia contagem de um discurso medido rente à inteligência emocional.



p.s.

passo em voo breve. mas urgente, para agradecer.
:)

beijos.

Justine disse...

Um texto leve e corrido, coloquial, para ilustrar uma situação dramática, vivida todos os dias por (quase) todos nós!
Está difícil, tudo isto...

luis lourenço disse...

Fenomenologia do quotidiano muito bem escrita e ilustrada! E que bela análise da psicologia vivencial das relações humanas?

Nilson Barcelli disse...

Abordas os problemas com uma excelente narrativa.
Aparentemente, é um capítulo de um romance que estás a escrever. Isto é, pelo enunciado e pelo formato do texto, podes continuar a escrever continuando a história.

Abraço.

Justine disse...

P.S.: obrigada pela informação, mas sim, sabia que AB tem uma fixação anual por jacaandás:))

pin gente disse...

uff estava a ficar angustiada...

muito bonita a história!
abraço
luísa

Teresa Durães disse...

a precariedade e as resoluções tomadas pela força das circunstâncias

Rui disse...

O casamento como solução para alguma coisa. Vai havendo quem pense assim.

Já os estou a ver, de mão dada, a passear nas imediações do Zamek Krolewski e depois a irem às compras a um Biedronka, onde sempre lhes parece que matam saudades de casa.

A Respigadeira disse...

Gostei da realidade deste texto.

Beijinhos.

segurademim disse...

... muita ternura, companheirismo, apoio, gente com letra maiúscula, a reinventar a vida, o amor

e como é difícil mudar

Alberto Oliveira disse...

E de malas aviadas
p´rá Polónia lá partiram
iam ser favas contadas
e favas? será que haviam?

Mas por isso e à cautela
como o bom portuguesinho
levaram uma morcela
e cinco litro de vinho.



Caro José:

Voltámos atrás no tempo. Qual globalização, qual carapuça!?

Abraço e sorrisos... amarelos.

mfc disse...

Esta vida é mesmo de cão!
... e nós somos gente, caramba!