domingo, 11 de janeiro de 2009

SARA


1.

Eu e o Raul já estávamos de saída.

A Sara entrou sem eu ter notado. Sala enorme, eu distraído...
O Pedro aproximou-se e segredou-me «Vamos ali ao balcão. A miúda da noite acabou de chegar!»
Fomos.

A Sara vinha exuberante: casaquinho de lã roxo sobre vestido madre-pérola. Um fiozinho de ouro, rutilante, quase gargantilha, finíssimo, apenas um brinco à esquerda e os lábios acetinados. Displicentemente, segurava uma malinha na mão direita. O lacinho do sapato de salto raso insinuava uma Cinderela.
Chegou sozinha.
Varria a sala à procura do grupo que a aguardava. Havia uma ténue ansiedade na sua postura.

O Pedro pediu bebidas e eu «Como é que uma miúda chega aqui, assim, sozinha...» O Pedro contido «Deixa ver se o grupo dela é contíguo ao nosso. Vês aquele lugar vago lá ao fundo?»
Era.

«Tomas o quê, Raul?» Virando-se «Mas não estávamos de saída, Paulo» O Pedro «É cedo! Sair agora, nem pensar, Raul!» Peremptório «Vou-me embora. Chega. Portem-se bem, meninos!»
Saiu.

2.

Trocámos beijinhos e as perguntas de circunstância. Pedi uma caipirinha.
A Ana disse-me «Não olhes agora, Sara. À tua esquerda está um grupo de rapazes que acabou de perder um elemento. O de blazer verde está excitadissimo desde a tua chegada. À esquerda deles, uma das moçoilas, a mais feia, chama-se Estela -- Como sabes? -- Alinhas em pedir ao empregado que lhes sirva duas cervejas para cada um e um "Cheers, Estela!"Discretamente, mirei o grupo dos rapazes. A seguir, o da Estela. «Como reagirão eles?» A Ana, resoluta «Quero lá saber! Até podemos pedir que seja levado ao grupo da Estela uma rodada de Bailey. Que tal?» Insistindo «E quem vai pagar esse consumo?» A Ana decidida «Eles. A gente vai-se pirar!» «Se der para torto , a responsabilidade é tua, Ana!»
A Ana chamou empregado e fez os pedidos detalhando as bebidas e os consumidores.

Quando regressei do Toilette, ao passar pelo balcão, o Paulo interpelou-me «Tanta cerveja na nossa mesa e licor na mesa ao lado é de uma brincadeira que se trata, não é?» «Desculpe!» Ele «Só terá de responder, sim ou não: a ideia partiu de si ou das suas amigas, Sara?»

Para espanto de ambos, nesse instante a Estela, com o cálice na mão, falava com o Pedro e, parecendo ambos concordar, levantaram-se para que os três grupos se juntassem.
Eu estava estupefacta.
Já tivera oportunidade de participar em partidas piores. Nunca vi ninguém reagir assim.

Parecendo ler o meu pensamento, o Paulo acrescentou «Aceita tomar uma bebida aqui ou num outro bar, à sua escolha?» Eu «Sim! Mas é claro que aceito, Paulo!»


3.

Depois daquela noite, após várias insistências, primeiro com a Ana, mais tarde com o Pedro, consegui que nos juntássemos para jantar.

Enquanto eles partilharam os amigos, não perceberam que tanto a Sara, para o grupo da Ana, quanto o Paulo, para o grupo do Pedro, funcionavam como âncoras.
Eu não faço ideia o que terão pensado a meu respeito.
Provavelmente, que poderiam divertir-se.
Tolice!

O bar fechou.
Nem sei porquê!

Frequentamos outros sítios.
Que se há-de fazer à noite, ao fim de semana, para além de beber, brincar, trocar afectos, namorar até!

«Estela, quer outra caipirinha?»


Ilustração:

«In Love»
Gentileza Google

19 comentários:

Justine disse...

A tua labiríntica estória, teia bem tecida de aproximações, desconfianças, audácias e desencontros, faz-me lembrar algumas situações pessoais, vividas nos bons idos anos 70!
Agora, retirada das "lides", não sei como funciona a "noite", mas presumo que muito menos inocentemente...

mfc disse...

A vida também é feita de não equívocos!

Arábica disse...

Olá!


O que fazer depois da meia noite, em idade de brincar, quando a hora do lobo chega e os chapéuzinhos vermelhos já não são assim tão ingénuos? :)

Bom relato, José Duarte!

E é pelas "estórias" que nos escreves que deixei algo para ti, no "Pequenas Doses" :)

Um beijo, boa semana

Alberto Oliveira disse...

Caro José:

Não sei o que se me meteu na cabeça que, ao ler o título da tua estória pensei num texto bíblico com "atalhos" atè à faixa de Gaza. O que me fazem os conturbados tempos que vivemos...

Mas esta Sara não é decididamente a esposa de Abraão e apenas se diverte num cenário habilmente construido por ti.

Abração.

lélé disse...

Aguardei pelo que outros comentadores comentassem, porque me senti completamente perdida!... E, porque continuo pouco esclarecida e não acredito que consiga ir mais longe, lá vai disto...
É interessante ver que, apesar dos grupos "serem" do Pedro e da Ana, as respectivas âncoras não eram eles... Faz sentido! As âncoras são mais "discretas"...

vida de vidro disse...

Uma teia bem urdida de aproximações e desencontros da qual resulta o que provavelmente nenhum dos grupos esperava. Mas a química entre as pessoas é imprevisível... **

pin gente disse...

eu também aceitava uma caipirinha!

mdsol disse...

teias que o império (dos sentidos) tece?

:))

OUTONO disse...

...ok! meus senhores...vamos colocar o primeiro grupo no canto da sala...

..Quero mais iluminação sobre o canto direito...

...calma...tem de se fazer um ensaio para medição dos passos da Sara...ela não pode fugir do cenário...

...o segundo grupo fica quieto...as bebidas podem ficar desarrumadas das mesas...

OK! - ACÇÃO !

Corta!

...o vestido da Sara...tem de ser mais curto...e atenção ao decote...

...tu aí... ficas encostado ao bar...

Quero toda a gente certa nas entradas do guião...

- ACÇÃO!

.... .....

-CORTA!

Ouve lá...quando disseres JPD ...dá um tom calmo...concordante...OK!

- TAKE FINAL!

- ACÇÃO

pin gente disse...

sara, ana, pedro, paulo, raúl, estela e cinderela... é no que dá eu passo a chamar-me isabel... eheheh

abraço
luísa

isabel mendes ferreira disse...

a noite é mesmo uma estrada...:)))aberta a todos os reais não existentes...

e por ela chegamos à arte de saber re.contar o fulgor de existir.


sempre me cativa a sua capacidade de criar e re.criar "a parábola" do ser.


obrigada.

muito.


pelo muito que me tem sido.

Maria Clarinda disse...

Adorei...li e reli o teu post!
Jinhos mil

Rui disse...

Pareceu-me que ele era a bóia de salvação.

Teresa Durães disse...

São nesses encontros e posturas que por vezes temos surpresas agradáveis (ou não)

Graça Pires disse...

A noite é sempre um lugar de sobrevivência, de equívocos, de amores e desamores. Gostei muito do texto. Um abraço.

luis lourenço disse...

JPD!

deliciosamente contado e escrito... e com moral da história...que faz pensar.

Abraços

Véu de Maya

Arábica disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Arábica disse...

Quem bebia uma caipirinha hoje, era eu...


Dificil a alegria nestes tempos anoitecidos...

Bom fim de semana!

Anónimo disse...

gosto da ilustração e muito