domingo, 7 de dezembro de 2008

GPS

1.
Robert de la Grive (*), jovem fidalgo piemotês, naufragou nos mares do Sul (Pacífico) em 1643, em busca do ponto fixo, o meridiano antípoda -- a 180 graus de Greenwich -- onde supostamente se encontram as ilhas Salomão, conhecidas na Bíblia como fonte de grande riqueza.
Após o seu naufrágio, Robert encontra um barco deserto que está ancorado numa ilha à beira desse meridiano.
Gaspar -- Sábio de formação religiosa -- misteriosamente encontra-se sozinho no barco recheado de relógios e outros artefactos técnicos não muito comuns.

Robert e Gaspar travam fabulosas discussões, onde se resume o conhecimento da época. Gaspar consegue defender e conciliar todo o tipo de conhecimento científico e religioso, mostrando uma erudição imbatível para a explicação da existência de um dia antes como forma do aparecimento e desaparecimento das águas do dilúvio bíblico (*).


2.
A nossa posição sobre a Terra é referenciada em relação ao equador e ao meridiano de Greenwich e traduz-se em três números: a latitude, a longitude e a altitude.

O GPS é um sistema de posicionamento geográfico que nos dá as coordenadas de um lugar na Terra, desde que tenhamos um receptor de sinais GPS. (É indispensável a utilização de satélite.)


3.
Em o3 de Abril de 1973 Martin Cooper causou furor em Manhattan. Muitos Nova-Iorquinos pararam, boquiabertos, porque viram um tipo a falar ao telemóvel na rua.


4.
O sucesso de vendas dos telemóveis deveu-se ao facto de as pessoas terem percebido que dispor de um gadget daqueles as colocaria no centro do mundo.
Irreversivelmente.
Livres da prisão da rede fixa e com tantas prerrogativas quem ousaria resistir?
Um verdadeiro golpe de asa!

Se vivemos na Aldeia Global, afinal quem são os nossos vizinhos? (**)

O tal centro é definido pelo arco de círculo do espectro onde funciona a rede escolhida para comunicar.
Estabelecido o nosso centro, o que estiver no seu exterior é o vazio, a periferia?
A intersecção dos arcos de circunferência de cada um dos operadores de redes móveis, definindo zonas comuns de comunicação, por intersecção dos respectivos arcos do espectro, também esgotariam as zonas presuntivamente vazias.
Não havendo comunicadores e comunicações, jamais existirão periferias.

Havendo centro sem periferia como resolver a novidade comercal de GPS nos telemóveis?

Estando cada comunicador no seu centro necessita de se deslocar para onde e porquê?
Para praticar a transumância?
Pela inqualificável ânsia venal de enriquecimento ou pelo desiderato frívolo de omnipresença ou omnipotência -- É por estas razões que os comunicadores prescindem da sua privacidade, dizendo tudo e o desnecessário ao telemóvel?
Ou, sinceros tementes, num angustiado desamparo de Babel expõem-se à fúria de uma incerta e inclemente reprise do dilúvio?


(*)
«ILHA DO DIA ANTES»
Umberto Eco
Ed. Difel

(**)
«Se vivemos na Aldeia Global, quem são os nossos vizinhos?»
Era este o spot do programa da SIC Notícias «A SOCIEDADE DAS NAÇÕES».

12 comentários:

Arábica disse...

E será que os GPS dos telemóveis terão aquela voz de secretária eficiente e enjoada para nos avisar que chegamos ao nosso destino? :)


Pouco atreita a modernismos, gosto -quando tenho duvidas da longitude ou da latitude a que me encontro- de parar na rua e perguntar a alguém: Boa tarde, para a Travessa do Guarda Jóias, estou a ir na direcção certa? :)

Agora se houvesse um GPS que me indicasse o caminho para um qualquer barco carregadinho de jóias e vasos de barro antigos, aí a história já era outra :))

vida de vidro disse...

Por enquanto ainda gosto de me perder... um bocadinho. :) E essa conversa de estar no centro também não faz muito o meu género. feitios... :)**

Graça Pires disse...

Gosto de ler Umberto Eco.
Quanto aos GPSs ainda não aderi. Também gosto de procurar...
Um abraço.

vieira calado disse...

Coisas de que eu pouco sabia. Obrigado.
E também pelos seus votos, em relação ao meu novo livro.

Bem haja

Alberto Oliveira disse...

"Amor aparece
não quero que te vás.
Sem o gê pê ésse
não sei onde estás."

Foi assim, rimando para o éter, que Sezinando, habitante da Aldeia Global, procurou pela sua amada. Nenhum vizinho lhe valeu.

Abraço José.

Teresa Durães disse...

fotografias, filmes, GPS. Já não é um telemóvel mas um briquendo. Prefiro perder-me e andar a preto e branco

Nilson Barcelli disse...

Nos últimos anos a comunicação é de facto um verdadeiro dilúvio.
Mas, sem ele, como ficaríamos?
Abraço.

mdsol disse...

O amor opera milagres!
:))

lélé disse...

O texto é demasiado "espesso" para a minha débil inteligência, mas parece-me que o excesso de "comunicação" é inversamente proporcional ao défice de comunicação e, por conseguinte, não há um centro, porque cada telemóvel é um centro...

Carla disse...

mudou certamente o cocneito de vizinhos...até porque muitas vezes nem sabemos quem vive na porta ao lado
beijos

mfc disse...

Eu perco-me para me poder encontrar.
O GPS é o meu ponto de encontro comigo.

Fernanda disse...

Na nossa casa global, deveriamos, para podermos conhecer os nossos vizinhos, viver juntos mas não misturados.
No entanto, parece-me, que vivemos todos misturados e nunca juntos.
Talvez, por isso, não sei,...a necessidade da procura de algo transcendente e preciso, que nos indique onde estamos, com quem estamos e para onde vamos...

Pena,...que um OLHAR não baste.

Um bom ano,...com ou sem GPS:))