OS SONS
No autocarro para casa, se vier com o estojo do trombone, sentar-me-ei se houver um lugar vago junto a corredor. Pedir para ocupar a vaga junto à janela, não. Ter de apoiar o estojo no colo chateia-me. Além disso, constrange quem estiver ao meu lado.
Conheci a Dulce no autocarro. Sentada junto à janela.
Alheada.
Posei o estojo no chão. Sentei-me. Só cinco minutos depois é que olhei para ela. Vestia com sobriedade: camisa verde pérola, um casaco de malha ligeiramente mais escuro, suavemente pousado sobre os ombros e uma saia verde forte. Cabelo castanho claro levemente anelado, curto. Brincos minúsculos, rutilantes. Mais tarde, quando lhe devolvi o casaco de malha é que reparei naqueles enormes olhos.
Presto:
Quinze minutos depois pediu-me licença para sair. Quando o autocarro arrancou reparei que tinha deixado o casaco no banco. Apanhei-o. Agarrei no estojo e precipitei-me para o motorista «Pare, se faz favor. A senhora que acabou de sair esqueceu o casaco!»
Andante molto maestro:
Corri. Era desnecessário «Esqueceu-se do casaco...» Ela condescendendo «Ah! Cabeça a minha...Obrigado!» Afinal até íamos para o mesmo sítio e podíamos aproveitar para conversar.
Allegro con brio:
Os passeios repetiram-se. Trocámos ideias, confrontámos projectos, partilhamos afectos.
Exultate, jubilate:
Sendo o estado de benquerença tão sublime, confinámo-nos a uma residência. A Dulce veio cá para casa. Fartei-me de tocar. Ela adorava. Sentia-me como G. Maupassant «Eu ficava anelante, tão ébrio/ de sensações que a perturbação/ dessa embriaguez fazia delirar/ os meus sentidos. Na verdade já não/ sabia se respirava música, se ouvia/ perfumes ou se dormia nas estrelas»
O SILÊNCIO
Staccato:
As variações de humor conduzem as atitudes. É sabido. Falamos menos, alegramos-nos pouco. A rotina esmaga-nos. Alterar comportamentos, alivia-nos, é certo. Nem sempre restitui a alegria.
A Dulce falava cada vez menos. Eu ensaiava por impulsos. Aborrecia-me.
Custava-me o desencanto da Dulce. Ela não ajudava. Eu não encontrava maneira de desanuviar. Parecíamos dois meninos desorientados pela perda do colo.
O TEMPO
Lacrimosa:
A concepção comum do tempo é indicada por intervalos ou períodos de duração. Éramos alternadamente loquazes e silentes. Mas sem domínio sobre esses comportamentos. Sem qualquer sintonia, também. A euforia de um não vencia a soturnidade do outro. Nem nos contagiávamos! Dir-se-ia estarmos apatetados pela perda do espaço-tempo do nosso universo.
Enquanto fumo aqui à varanda -- O tabaco está a um preço de agiota! -- penso na Dulce -- Sem me importar que a cinza caia sobre a roupa ou sequer que a minha ex «Bardamerda para ela!» que acabou de ligar «Voltaste a pendurar roupa na vara do trombone?» -- penso em nós. Ela saiu e voltou a esquecer-se do casaco de malha. Desta vez vou guardá-lo. Correr também cansa!
Joaquim Allegro
10 comentários:
o desenvolvimento de muitas famílias conduzem com esta histórias muito bem escrita
Estamos sempre sujeitos a ser surpreendidos por uma sinfonia. E a ser convidados a participar nela. Se depois temos fôlego para o trombone ou se gostam da nossa música, é que é mais complicado.
Uma coisa é certa: há que manter o trombone afinado, dando-lhe uso.
é um instrumento simpático o trombome
difícil de acomodar nos transportes públicos é mais simples na intimidade
coragem a da dulce que ainda conservou o casaco algum tempo...
O Tempo é assim mesmo. Estraga tudo.
acredito no virar do disco...
abraço
Excelente texto com os compassos perfeitos formando uma sinfoniua. Parabéns. Jinhos mil
dulcíssimo :) beijinho, duarte.
A folia inicial de uma relação nunca dura muito tempo... só depois dela passar é que conseguimos claramente ver se existe a tal empatia para continuar. Se não existir não vale a pena deixar casacos para trás :)
BJokas
... os tempos musicais estão muito bem definidos em contraponto com a música do quotidiano.
Sendo verdade que os tempos não estão para "muitas notas", é sempre bom saber que ainda há quem use a pauta para escrever "allegros", que alegram algumas tristezas.
Por coincidência, editei ao fim do dia de ontem um texto com música... de sopro.
abraço.
A história está contada de uma forma excelente.
Gostei a valer, foto incluída.
Bom resto de semana, abraço.
Enviar um comentário